Não foi o santo que alguns louvavam nem o demónio que
outros aborreciam, foi, ainda que não simplesmente, um homem. Chamou-se Álvaro
Cunhal e o seu nome foi, durante anos, para muitos portugueses, sínónimo de uma
certa esperança. Encarnou convicções a que guardou inabalável fidelidade, foi
testemunha e agente dos tempos em que elas prosperaram, assistiu ao declínio
dos conceitos, à dissolução dos juízos, à perversão das práticas. As memórias
pessoais que se recusou a escrever talvez nos ajudassem a compreender melhor os
fundamentos da raquítica árvore a cuja sombra se recolhem hoje os portugueses a
ingerir os palavrosos farnéis com que julgam alimentar o espírito. Não leremos
as memórias de Álvaro Cunhal e com essa falta teremos de nos conformar. E
também não leremos o que, olhando desde este tempo em que estamos o tempo que
passou, seria provavelmente o mais instrutivo de todos os documentos que
poderiam sair da sua inteligência e das suas finas mãos de artista: uma
reflexão sobre a grandeza e decadência dos impérios, incluindo aqueles que
construímos dentro de nós próprios, essas armações de ideias que nos mantêm o
corpo levantado e que todos os dias nos pedem contas, mesmo quando nos negamos
a prestá-las. Como se tivesse fechado uma porta e aberto outra, o ideólogo
tornou-se autor de romances, o dirigente político retirado passou a guardar
silêncio sobre os destinos possíveis e prováveis do partido de que havia sido,
por muitos anos, contínua e quase única referência. Quer no plano nacional quer
no plano internacional, não duvido de que tenham sido de amargura as horas que
Álvaro Cunhal viveu ainda. Não foi o único, e ele o sabia. Algumas vezes o
militante que sou não esteve de acordo com o secretário-geral que ele era, e
disse-lho. A esta distância, porém, já tudo parece esfumar-se, até as razões
com que, sem resultados que se vissem, nos pretendíamos convencer um ao outro.
O mundo seguiu o seu caminho e deixou-nos para trás. Envelhecer é não ser
preciso. Ainda precisávamos de Cunhal quando ele se retirou. Agora é demasiado
tarde. O que não conseguimos é iludir esta espécie de sentimento de orfandade
que nos toma quando nele pensamos. Quando nele penso. E compreendo, garanto que
compreendo, o que um dia Graham Greene disse a Eduardo Lourenço: “O meu sonho,
no que toca a Portugal, seria conhecer Álvaro Cunhal”. O grande escritor
britânico deu voz ao que tantos sentiam. Entende-se que lhe sintamos a falta.
José Saramago em
O Caderno, 2º Volume.
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