No final de
Novembro de 1939, Miguel Torga é preso em Leiria e, passados dias, é
transferido para o Aljube, em Lisboa, onde permaneceu até Fevereiro de 1940.
Torga já estava referenciado pela polícia política de Salazar e quando publica O
Quarto Dia da Criação do Mundo em que faz uma referência à Guerra Civil de
Espanha, essa impiedosa tragédia que Franco impôs ao seu povo.
No IX volume do
seu Diário, Torga denuncia que vem de longe (em 1961 já eram 35 anos) a
vigilância que a ditadura de Salazar exerveu sobre a sua pessoa e a sua obra:
Coimbra, 27 de Abril de 1961 — Há trinta e cinco anos
(desde que, praticamente, comecei a ser gente) que vivo vigiado, como, de
resto, todos aqui. E há trinta e cinco anos que olho com o mesmo consternado
espanto os sujeitos que me vigiam. Nos tempos da Inquisição, ainda se poderia
aceitar — com dificuldade, mas enfim… — que o fanatismo da fé levasse certos
homens a comportamentos desumanos, embora Deus lhes não encomendasse o sermão.
Mas agora nenhuma cega força interior motiva semelhante deformação. Um polícia
secreto de hoje procede à margem de qualquer impulso sectário. Actua
simplesmente por ofício. E é isso que me penaliza e assombra: que a
intolerância possa constituir um modo de vida”
Salazar não
gostou do que Torga escreveu sobre a guerra de Espanha, a opressão que ocorria
na Itália fascista e, ao mesmo tempo, em Portugal.
Encontra aí motivos para mandar apreender o livro e ordenar a prisão do escritor.
No Diário,
Torga não faz qualquer referência a essa prisão.
Apenas deixou
registo em seis poemas, incluídos no 1º volume do Diário, poemas que
expressam bem esses dias de raiva:
Exortação,
ainda na prisão de Leiria, datado de 30 de Novembro;
Lembrança,
já no Aljube, datado de 6 de Dezembro;
Pietà,
datado de Natal de 39 – Como se fosse ainda em S. Pedro de Roma;
Canção, datado
de 30 de Dezembro;
Claridade,
datado de 1 de Fevereiro.
São estes os
poemas:
Exortação
Meu irmão na distância, homem
Que nesta mesma cama hás-de sofrer:
Que nem a terra nem o céu te domem;
Nenhuma dor te impeça de viver.
Lembrança
Ponho um ramo de flores
na lembrança perfeita dos teus braços;
cheiro depois as flores
e converso contigo
sobre a nuvem que pesa no teu rosto;
dizes sinceramente
que é um desgosto.
Depois,
não sei porquê nem porque não,
essa recordação desfaz-se em fumo;
muito ao de leve foge a tua mão,
e a melodia já mudou de rumo.
Coisa esquisita é esta da lembrança!
Na maior noite
na maior solidão,
vem a tua presença verdadeira,
e eu vejo no teu rosto o teu desgosto,
e um ramo de flores, que não existe, cheira!
Pietà
Vejo-te ainda, Mãe, de olhar parado,
Da pedra e da tristeza, no teu canto,
Comigo ao colo, morto e nu, gelado,
Embrulhado nas dobras do teu manto.
Da pedra e da tristeza, no teu canto,
Comigo ao colo, morto e nu, gelado,
Embrulhado nas dobras do teu manto.
Sobre o golpe sem fundo do meu lado
Ia caindo o rio do teu pranto;
E o meu corpo pasmava, amortalhado,
De um rio amargo que adoçava tanto.
Ia caindo o rio do teu pranto;
E o meu corpo pasmava, amortalhado,
De um rio amargo que adoçava tanto.
Depois, a noite de uma outra vida
Veio descendo lenta, apetecida
Pela terra-polar de que me fiz;
Veio descendo lenta, apetecida
Pela terra-polar de que me fiz;
Mas o teu pranto, pela noite além,
Seiva do mundo, ia caindo, Mãe,
Na sepultura fria da raiz.
Seiva do mundo, ia caindo, Mãe,
Na sepultura fria da raiz.
Canção
À janela da casa,
Ave só na lembrança,
Já nem levanta a asa
Que a mãe lhe deu de herança.
A sua dor é clara:
Bate-lhe o sol em cheio;
Um sol branco, que vara
Tudo de meio a meio.
Não é sede nem fome
(Água tem ela à mão,
E comida, que não come),
Doença má também não.
Falta-lhe a liberdade.
Só essa dor lhe dói.
Mas só por ela há-de
Não ser o que foi.
Ariane
Ariane é um navio.
Tem mastros, velas e bandeira à proa,
E chegou num dia branco, frio,
A este rio Tejo de Lisboa.
Carregado de Sonho, fundeou
Dentro da claridade destas grades...
Cisne de todos, que se foi, voltou
Só para os olhos de quem tem saudades...
Foram duas fragatas ver quem era
Um tal milagre assim: era um navio
Que se balança ali à minha espera
Entre as gaivotas que se dão no rio.
Mas eu é que não pude ainda por meus passos
Sair desta prisão em corpo inteiro,
E levantar âncora, e cair nos braços
De Ariane, o veleiro.
Ariane é um navio.
Tem mastros, velas e bandeira à proa,
E chegou num dia branco, frio,
A este rio Tejo de Lisboa.
Carregado de Sonho, fundeou
Dentro da claridade destas grades...
Cisne de todos, que se foi, voltou
Só para os olhos de quem tem saudades...
Foram duas fragatas ver quem era
Um tal milagre assim: era um navio
Que se balança ali à minha espera
Entre as gaivotas que se dão no rio.
Mas eu é que não pude ainda por meus passos
Sair desta prisão em corpo inteiro,
E levantar âncora, e cair nos braços
De Ariane, o veleiro.
Clareou.
Vieram pombas e sol,
e, de mistura com Sonho,
pousou tudo num telhado...
(Eu, destas grades, a ver,
desconfiado.)
Vieram pombas e sol,
e, de mistura com Sonho,
pousou tudo num telhado...
(Eu, destas grades, a ver,
desconfiado.)
Depois,
uma rapariga loira,
(era loira)
num mirante
estendeu roupa num cordel:
Roupa branca, remendada,
que se via
que era de gente lavada,
e só por isso aquecia...
uma rapariga loira,
(era loira)
num mirante
estendeu roupa num cordel:
Roupa branca, remendada,
que se via
que era de gente lavada,
e só por isso aquecia...
E não foi preciso mais:
Logo a alma
clareou por sua vez.
Logo o coração parado
bateu a grande pancada
da vida com sol e pombas
e roupa branca, lavada.
Logo a alma
clareou por sua vez.
Logo o coração parado
bateu a grande pancada
da vida com sol e pombas
e roupa branca, lavada.
Legenda:
A fotoga fia do
Aljube é de Joshua Benoliel.
Fotografias do
cadastro de Miguel Torga na PVDE
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