Testemunho do Sonho
Marguerite Yourcenar
Tradução: Maria
Filomena Duarte
Capa: Antunes
Círculo de
Leitores, Lisboa s/d
Ao quarto copo, vieram-lhe à mente ideias inusitadas;
pensou; mirou o calendário, que celebrava as virtudes de uma marca de
medicamentos, e perguntou a si próprio o que significava aquilo dos dias, dos
meses e dos anos; achou muita graça às primeiras moscas da época suspensas da
sua armadilha de papel gomado, esforçando-se fracamente por se escaparem antes
de morrer; satisfeito por ter retirado tão bem o que apendera na escola, disse
para com os seus botões que, em suma, é assim, de cabeça para baixo, que os
homens andam de um lado para o outro nessa enorme bola que anda à roda.
Precisamente, estava tudo a andar à roda: uma valsa majestosa arrastava as
paredes. O calendário dos medicamentos, o cartaz das laranjas, o retrato do
chefe do Estado e a sua própria mão que tentava em vão segurar uma garrafa.
Mais um copo, e os olhos fecharam-se-lhe como se a noite, apesar de tudo,
valesse mais do que a sala de uma taberna; o ponto de apoio da parede faltou às
costas da cadeira; rolou para o chão sem se aperceber que caía e sentiu-se como
um morto.
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