terça-feira, 29 de junho de 2021

OLHAR AS CAPAS


Um Passado Perfeito

Leonardo Padura

Tradução: Helena Pitta

Edições Asa, Porto, 2009

Quando uma pessoa está assim tensa, e sente que não consegue pensar muito, o melhor é acender um havano, não o acendendo por acender e puxar o fumo, mas para o fumar a sério, única forma de o charuto nos oferecer todas as suas qualidades. Eu próprio, ao fumar assim quando faço estas coisas, estou a desperdiçar estes Davidoff  5000 Gran Corona de 14,2 centímetros, que merecem um fumar reflexivo ou simplesmente que nos sentemos a fumar e a conversar uma hora, o tempo que um charuto deve durar. O que acendi de manhã foi um desastre: primeiro porque a manhã nunca foi o melhor momento para um charuto desta categoria e, segundo, porque não lhe dei a atenção devida e o maltratei.  Depois, e por muito que o quisesse, já não consegui arranjá-lo e parecia estar a fumar uma breva * de amateur, podes crer. Não sei como preferes fumar dois maços de cigarros todos os dias em vez de um havano. Isso faz-te mal. Já nem digo que seja um Davidoff 5000 ou qualquer outro bom Corona, um Romeu y Julieta Cedros Nº 2, por exemplo, um Montecristo Nº 3 , ou um Rey del Mundo de qualquer medida, mas um bom charuto de capa escura, que puxe suavemente e queime por igual. Isso é a vida, Mário, ou o que mais se lhe assemelha. Kipling dizia que uma mulher é só uma mulher, mas que um bom puro, como lhe chamam na Europa, é qualquer coisa. E eu digo-te que o tipo tinha toda a razão porque, ainda que não perceba muito de mulheres, disto percebo. É a festa dos prazeres e dos sentidos, velho: recreia a vista, desperta o olfato, aperfeiçoa o tacto e cria o bom gosto que uma chávena de chá depois da refeição completa. E até tem a sua música para os ouvidos. Ouve, movo-o entre os dedos e geme como se estivesse com cio. Estás a ouvir? Esses são os prazeres complementares: ver uma cinza de dois centímetros bem formada ou retirar a faixa que o rodeia depois de ter fumado o primeiro terço. Não é a vida? Não olhes para mim com essa cara, que isto é muito sério, mais do que pensas. Fumar é um prazer, sobretudo se souberes fumar. O que tu fazes é um vício, uma vulgaridade, e por isso ficas um bruto e desesperas. Entende uma coisa, Mário, este é um caso como qualquer outro e tu vais resolvê-lo. Mas não deixes que o passado te influencie, ok? Olha, para saíres deste buraco, vou fazer uma excepção, bom, tu sabes que eu não ofereço um charuto a ninguém, mas vou dar-te este Davidoff 5000. Vou dizer agora a Maruchi que te traga café e vais acendê-lo, como te disse que se acende, e depois dizes-me. Serias muito estúpido se isto não te ajudasse a viver.

 

  • Charuto ligeiramente achatado e menos compacto que os cilíndricos (Nota do Tradutor).

Colaboração de Luís Miguel Mira

2 comentários:

Sammy, o paquete disse...

Esta colaboração do Luís Miguel Mira trazia um recado atrás: «Como já percebi que não andas com muita paciência para o blogue, aqui vai, por graça, um pequeno excerto de um livro do Leonardo Padura que acabei de ler.»
A falta de paciência entrou sorrateiramente porta dentro. Das duas, uma: ou o Cais fechava ou havia que encontrar uma qualquer resposta. Veio então a tal frase do avô que dizia não da quantidade de vezes em que se cai mas da rapidez com que nos levantamos.
Assim será.
Também se dirá que, de há muito, o Luís Miguel Mira deixou de nos oferecer as excelentes Crónicas da América. Há um motivo: o computador deu o real berro.
Há a promessa de um regresso.

Anónimo disse...

Boa Sammy!
Já basta a pandemia, quanto mais ficar sem o teu blogue...
Quando chegar o novo computador recomeçará a brincadeira das crónicas, que poderão ser "simpáticas" mas estarão longe de ser excelentes... Isto se conseguir recuperar as cerca de uma vintena que já se encontravam esboçadas. Caso contrário levará mais tempo...
Força nisso!
Abraço!
Miguel