terça-feira, 29 de junho de 2021

PERTO DO CORAÇÃO

Aqui e ali, em algum vão de escada ou em algum inviável primeiro andar frequentado por gente silenciosa e obscura, em qualquer esquina perdida, ou persistindo arruinadamente entre ostensivas montras de bancos e de prontos-a-vestir, resistem na cidade as últimas cerzideiras, costureiras, apanhadoras de malhas em meias, engraxadores, latoeiros, caldeireiros, sapateiros e toda a legião de artesãos que os tempos urbanos, muito antes do chamado impacto do Mercado único, condenaram.

Hoje transformaram-se em segredos de família: quem conhece uma cerzideira não o diz a ninguém e partilha só com os amigos do peito e os parentes próximos esse inestimável património. E quem sabe do último limpa-chaminés, vindo do fundo da memória e de qualquer tugúrio das vizinhanças, recebe-o junto da lareira da sala com o orgulho discreto de quem recebesse o representante de extinta e esquisita dinastia.

Manuel António Pina, em Crónica, Saudade da Literatura

3 comentários:

Seve disse...

Ó Sammy esse foi um livro de que gostei muito e ouso acrescentar aqui algumas passagens que nele sublinhei:

-O que outro destino tem tudo senão o esquecimento?

-a ironia está em dizer uma coisa para dizer o contrário dessa coisa.

-os livros não servem apenas para ser lidos, mas também para não ser lidos e ter em casa para ler um dia que não chegará.

E esta, que me parece sublime:

-há anos convidaram-me para um debate na Antena 1 que tive de recusar porque a coisa seria por volta das 10 da madrugada, hora a que costumo estar já deitado.

Sammy, o paquete disse...

Manuel António Pina, a pessoa em si, o jornalista, o poeta, o escritor, estão no panteão dos meus extraordinários.

Sammy, o paquete disse...


Obrigado pelos seus sublinhados. Como o livro anda em «Leituras» também lhe devolvo alguns sublinhados:
«A infância é um lugar de exílio.»
«A casa é a sombra do «viajante.»
«Os meus mortos levaram consigo, de mim, palavras, memórias, dias, lugares, desígnios, incertezas; os seus olhos guardam para sempre o meu rosto, os meus ouvidos, a minha voz, Também eu morri com eles.»
«Há anos que somos governados por economistas e o resultado está à vista.»
«As palavras são seres intranquilos.»
«A ganância dos ricos não tem limites.»