Aqui e ali, em algum vão de escada ou em algum inviável primeiro andar frequentado por gente silenciosa e obscura, em qualquer esquina perdida, ou persistindo arruinadamente entre ostensivas montras de bancos e de prontos-a-vestir, resistem na cidade as últimas cerzideiras, costureiras, apanhadoras de malhas em meias, engraxadores, latoeiros, caldeireiros, sapateiros e toda a legião de artesãos que os tempos urbanos, muito antes do chamado impacto do Mercado único, condenaram.
Hoje transformaram-se em
segredos de família: quem conhece uma cerzideira não o diz a ninguém e partilha
só com os amigos do peito e os parentes próximos esse inestimável património. E
quem sabe do último limpa-chaminés, vindo do fundo da memória e de qualquer
tugúrio das vizinhanças, recebe-o junto da lareira da sala com o orgulho
discreto de quem recebesse o representante de extinta e esquisita dinastia.
Manuel
António Pina, em Crónica, Saudade da Literatura
3 comentários:
Ó Sammy esse foi um livro de que gostei muito e ouso acrescentar aqui algumas passagens que nele sublinhei:
-O que outro destino tem tudo senão o esquecimento?
-a ironia está em dizer uma coisa para dizer o contrário dessa coisa.
-os livros não servem apenas para ser lidos, mas também para não ser lidos e ter em casa para ler um dia que não chegará.
E esta, que me parece sublime:
-há anos convidaram-me para um debate na Antena 1 que tive de recusar porque a coisa seria por volta das 10 da madrugada, hora a que costumo estar já deitado.
Manuel António Pina, a pessoa em si, o jornalista, o poeta, o escritor, estão no panteão dos meus extraordinários.
Obrigado pelos seus sublinhados. Como o livro anda em «Leituras» também lhe devolvo alguns sublinhados:
«A infância é um lugar de exílio.»
«A casa é a sombra do «viajante.»
«Os meus mortos levaram consigo, de mim, palavras, memórias, dias, lugares, desígnios, incertezas; os seus olhos guardam para sempre o meu rosto, os meus ouvidos, a minha voz, Também eu morri com eles.»
«Há anos que somos governados por economistas e o resultado está à vista.»
«As palavras são seres intranquilos.»
«A ganância dos ricos não tem limites.»
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