segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

ESTA UCRÂNIA QUE RESPIRAMOS


Ucrânia.

Ali tão longe, ali tão perto.

Impossível não deixar falar de revolta, de raiva, de uma quase impotência.

Ficamos mais pobres em cada hora que as bombas caem na terra ucraniana.

Putin: a estranha atracção que bestas como esta têm pelo fim do mundo. Fez questão de lembrar que possui armas nucleares. Ao longo dos tempos, de todos os tempos, em qualquer lugar há sempre monstros dispostos a tudo.

Imagens de uma reportagem televisisva:

Uma velha olhando, do seu quase destruído lar, a rua, tendo ao lado um gato de cor amarela.

Uma criança desenhando – o quê? – num vidro embaciado da janela de uma casa em ruínas.

Desolação, duros olhares, angústias caladas.

1. 

Não se sabe de fonte segura o que a Europa e a América prometeram à Ucrânia.

Sabe-se apenas do olhar triste, das palavras ditas, raivas ocultas, no fim do primeiro dia de guerra, quando a Europa e a América andavam pelos gabinetes ainda a pensar no que fazer.

«Deixaram-nos sozinhos contra o exército russo.»

2.

Depois começaram a chegar à pinguinhas as sanções económicas.

Um papagaio-comentador a dizer que essas sanções não prejudicam os oligarcas russos, mas apenas o povo.

3.

Quinto dia da invasão da Rússia à Ucrânia.

Após muitas e muitas hesitações, são tantos os milhões de euros que a Gasprom disponibiliza naquelas casas, a FIFA e a UEFA anunciaram, esta segunda-feira, num comunicado conjunto, que a seleção da Rússia e os clubes daquele país estão suspensos de todas as provas internacionais por tempo indeterminado. Uma decisão tomada após a invasão da federação russa à Ucrânia.

 Quer isto dizer que a Rússia não vai disputar o play-off do Mundial-2022  e o Spartak Moscovo foi suspenso dos oitavos de final da Liga Europa, onde ia medir forças com o RB Leipzig.

E talvez sejam estas sanções que o povo, os que não sabem de economia e nem de finanças, entendam o quanto estão a ficar isolados do resto do mundo, que façam mais mossa do que as sanções económicas sobre os oligarcas russos e as suas distintas famílias.

4.

Fachada da sede do PCP em Beja vandalizada.

5.

A Ucrânia assinou hoje o projecto de adesão à União Europeia.

6.

Retalhistas dos Estados Unidos e Canadá já ordenaram a retirada das prateleiras de diversas marcas russas de vodka em protesto contra a invasão da Rússia à Ucrânia. Tanto estabelecimentos estatais como privados estão a aderir ao movimento e a acabar com a comercialização de vários produtos russos, principalmente bebidas alcoólicas.

7.

O que nos diz o ruidoso silêncio da China?

8.

«As sanções vão fazer sofrer tanto a Rússia, quanto os seus promotores, em particular a União Europeia. Os tambores de guerra vão sobrepor-se à prioridade mundial do combate à crise ambiental e climática, que exige uma necessária e urgente cooperação compulsória entre todas as grandes potências. Desde a crise dos mísseis de Cuba que nunca estivemos tão perto de uma situação em que um desaire, um erro de análise, uma ferida narcísica perante a perspectiva de uma derrota convencional, possa fazer descarrilar o conflito para o patamar nuclear. Mais do que nunca é preciso que a lucidez prudente prevaleça sobre a precipitação e o ressentimento»

Viriato Soromenho-Marques no Diário de Notícias

O MEU QUERIDO CHARLOT


A América tratou, muitas vezes, a pontapé alguns dos seus melhores filhos, bem como outros que, como Charles Spencer Chaplin, embora não tivessem nascido lá, aí passaram uma boa parte da sua vida profissional.

Entre os principais responsáveis por essa perseguição estava, quase sempre, uma figura triste e sinistra que dava pelo nome de Edgar Hoover, o todo-poderoso patrão do FBI.

Hoover tomou Chaplin de ponta. Acusou-o de ser imoral e comunista, que era aquilo que numa determinada época se dizia de alguém que se declarasse humanista e antibelicista.

Desde quando não se sabe bem ao certo, mas é muito provável que um dos primeiros sobressaltos de Hoover tenha surgido em 1936 com “Os Tempos Modernos”. Aquela crítica a uma Sociedade que utiliza os avanços da tecnologia, não para libertar e dignificar o trabalho do Homem, mas para o escravizar ainda mais, transformando-o numa mera peça de uma complexa engrenagem industrial imposta em nome de uma busca desenfreada do maior e mais rápido lucro possível, não lhe deve ter caído muito bem…

Como bem também não lhe caíram, certamente, as posições assumidas por Chaplin em favor da entrada dos Estados Unidos na II Guerra Mundial e o manifesto apoio que então deu aos soviéticos.

O discurso final de “O Grande Ditador”, de 1940, feito por um pobre barbeiro judeu perigosamente parecido com Adenoid Hynkel, o ditador da Tomânia, por sua vez perigosamente parecido com Adolf Hitler, pode muito bem ter sido a gota de água que fez transbordar o copo.

Apetecia-me espetar aqui todo esse discurso, que não só está cada vez mais adequado aos tristes tempos que atravessamos, como é essencial para compreendermos o pensamento e os Valores pelos quais Chaplin se regia. Mas é demasiado extenso e não vos quero maçar..


Deixarei apenas alguns extratos, exemplos de coisas que devem ter deixado Hoover com os poucos cabelos que tinha em pé:

……………………………………………

“Não quero governar nem conquistar ninguém.
Gostaria de auxiliar toda a gente – se possível: - os Judeus, os Gentios…, os Pretos…os Brancos.
Queremos todos ajudar-nos uns aos outros. Os seres humanos são assim. Queremos viver a felicidade dos outros e não a sua infelicidade. Não queremos odiar nem desprezar ninguém. 

Neste mundo há lugar para toda a gente. E a boa terra é rica e pode prover às necessidades de todos.

……………………………………………………………………………………………………………...

A nossa ciência tornou-nos cínicos; a nossa inteligência cruéis e impiedosos. Pensamos de mais e sentimos de menos. Precisamos mais de humanidade que de máquinas. Se temos necessidade de inteligência, temos ainda mais necessidade de bondade e de doçura. Sem essas qualidades, a vida será violenta e tudo estará perdido.

……………………………………………………………………...

Vós, povo, tendes o poder… o poder de criar máquinas. O poder de criar felicidade! Vós, povo, tendes o poder de tornar a vida livre e bela, de fazer desta vida uma aventura maravilhosa. Portanto, em nome da democracia, usemos desse poder. Unamo-nos. Lutemos por um mundo novo, um mundo que conceda a todos os homens a possibilidade de trabalhar, que dê futuro à juventude e segurança à velhice.

Foi prometendo-nos tudo isto que os tiranos tomaram conta do poder. Mas eles mentem. Não cumprem as promessas. Não as cumprirão nunca! Os ditadores libertam-se, mas tiranizam o povo. Lutemos agora para libertar o mundo, para derrubar as barreiras entre nações, para acabar com a cupidez, o ódio e a intolerância. Lutemos por um mundo guiado pela razão, um mundo em que a ciência e o progresso conduzam à felicidade universal. Soldados, em nome da democracia, unamo-nos.” (1)


Não, não eram Putin ou Donald Trump os destinatários desta mensagem, embora os ditadores (ou aprendizes de …), por maior e mais vistosa que seja a sua poupa ou pequeno o bigote, se assemelhem todos, perigosamente. 

Retomando a nossa conversa, quando o seguinte filme de Chaplin (“Monsieur Verdoux”) viu a luz do dia, em 1947, já o FBI tinha iniciado uma investigação oficial cujo único objetivo seria conseguir que o indesejável cidadão inglês Charles Spencer Chaplin fosse expulso dos Estados Unidos.

Para além do tema central do filme ser, para alguns, chocante e com duplos sentidos muito dúbios (um velhote astuto que casa com mulheres ricas para depois as matar e ficar com o seu dinheiro…), Chaplin atacou, de uma penada, dois dos pilares onde assentava a Sociedade Americana: a Igreja e a Indústria do Armamento.

No final do filme, a um padre que o vai visitar à prisão para, supostamente, lhe dar a extrema unção, Monsieur Verdoux estende-lhe a mão e pergunta-lhe, sorridente: “Ora diga lá, meu irmão, o que é que eu posso fazer por si…?”.  E, depois, larga aquela célebre tirada de que uma morte faz um assassino, milhares um Herói.

Uns Estados-Unidos recém-saídos de uma guerra devastadora, orgulhosos dos seus heróis que acabavam de regressar a casa, iriam ter uma enorme dificuldade em engolir uma tirada destas, e não é por acaso que “Monsieur Verdoux” foi o filme de Chaplin que pior acolhimento teve no seu país.

E quem mais o atacou foram os suspeitos do costume: os jornais da Cadeia Hearst (a “Fox News” da época…), as senhoras da Legião Católica, a Liga dos Antigos Combatentes, todos o acusavam de ser um depravado, um simpatizante comunista e um ingrato para com tudo o que a América e o seu povo lhe deram. Quanto ao filme, esse foi boicotado, com permanentes ameaças aos exibidores que ousassem passá-lo e constantes manifestações defronte de muitas das salas de Cinema que, apesar de tudo, teimassem em o mostrar. 

Por tudo isto, e ao mesmo tempo que mais em escândalo de saias vinha a público, com reivindicações de paternidade (o processo Joan Barry, do qual sairia completamente ilibado), a popularidade de Chaplin na América já havia conhecido melhores dias...


Mas Chaplin não se escondia e nunca fez silenciar a sua voz. Criticou abertamente a “caça às bruxas”, a perseguição aos comunistas feita pelo Senador Joseph McCarthy, a coberto das competências da “House Un-American Activitees Committee”, o que fez aumentar ainda mais os rumores de que seria, também, um deles.

Algumas pessoas mais próximas de Chaplin, como a sua ex-mulher, Paulette Goddard, foram chamadas a testemunhar perante o Comité, e dizia-se, na altura, que também ele o seria muito em breve, o que, na realidade, nunca chegou a acontecer.

Em 1952 concluiu a rodagem de mais um filme, “As Luzes da Ribalta” e decidiu que faria a sua estreia mundial em Londres, já que era lá que toda a história se passava.

E partiu no Queen Elizabeth, acompanhado por toda a família.

No seu íntimo, Chaplin estaria convencido de que muito dificilmente iria poder regressar aos Estados Unidos, mas talvez ainda mantivesse uma ténue esperança.

Os seus piores receios confirmaram-se já a meio da viagem quando, numa noite em que estava a jantar com o pianista Arthur Rubinstein, recebeu um telegrama em que, nas suas próprias palavras, o informavam que “a entrada nos Estados Unidos me era vedada e que, antes de poder lá voltar, devia comparecer na Comissão de Inquérito do Serviço de Imigração a fim de responder às acusações de depravação política e moral”. (2)

Chaplin só voltaria aos Estados Unidos vinte anos depois, em 1972, para receber, das mãos de Jack Lemmon, um Óscar Honorário pela sua Carreira.


Edgar Hoover ganhara a batalha e deve ter dado pulos de contente.

Durante uns tempos Chaplin e a sua família viveram divididos entre Londres, Paris e Roma, à medida que ia sendo feita a apresentação do filme. A ideia de uma instalação definitiva em Inglaterra foi abandonada, não só por ter considerado que o clima não seria o mais adequado para as crianças, habituadas ao Sol da Califórnia, mas também por receios relacionados com a “restrição de divisas” (3).

Foi então que um amigo lhe aconselhou a Suíça, tendo ficado algum tempo instalado no “Hotel Beau Rivage”, em Lausanne, à beira do Lago Léman , enquanto que com vagar procurava uma nova casa. Mas a mulher, Oona, que se encontrava grávida de um quinto filho, encostou-o à parede e “declarou, categoricamente que, depois do parto, não queria voltar para o hotel” (4).

A procura da casa foi apressada e o casal acabou por escolher o “Manoir de Ban”, na aldeia de Corsier, mesmo à entrada da pequena cidade de Vevey de que vos falei no último texto. Uma casa enorme com 24 quartos/salas distribuídos por três andares, onde iria viver o resto dos seus dias      

Sou suspeito porque, tal como muitos da minha geração, sempre nutri um grande carinho pelo Charlot da minha infância. Ele foi a nossa alegria, a nossa felicidade, a certeza, naquela tenra idade, de que era mesmo bom viver.


Durante anos a fio sempre fui dizendo que era Chaplin o meu realizador preferido. Os tempos passaram e hoje já não estou assim tão certo, mas se tivesse de escolher a Obra de um só cineasta para mostrar aos extraterrestres o que é o Cinema, muito provavelmente escolheria a de Charles Chaplin. Está lá tudo quanto é preciso saber: a Alegria, a Tristeza, o Amor, a Solidariedade, o respeito para com o Ser Humano, mesmo quando, por vezes, era necessário dar um pontapé no rabo de um polícia e escapar-lhe por debaixo das pernas…! A profunda gargalhada e a lágrima ao canto do olho, por vezes no interior do mesmo plano. 


É certo que, numa perspetiva de “linguagem cinematográfica”, Chaplin sempre foi muito conservador. E mesmo no que respeita à utilização do som ele foi, como se sabe, o último dos resistentes. Mas isso não valeria a pena contar aos extraterrestres… 

Eu gostava tanto do Charlot que quando me comecei a deslocar ao estrangeiro mais regularmente era, quase sempre, para ir a Londres comprar discos, mas nunca regressava a casa sem trazer comigo duas ou três das suas curtas-metragens. Ainda não havia cassetes e, muito menos, DVD’s. Era no tempo do Super-8 e esses pequenos filmes de menos de meia-hora de duração têm a honra de terem sido os primeiros da minha já muito extensa coleção privada. 

Uma vez fui à Cinemateca ver um excelente documentário sobre Chaplin. Não garanto o nome porque nunca mais o voltei a ver, mas julgo que se tratava de “The Gentleman Tramp”, iniciado por Peter Bogdanovich em 1976 e concluído por Richard Patterson com o apoio de Walter Matthau, que lhe dá a voz. 

 Os últimos minutos deste documentário são feitos com recurso a filmes caseiros da própria Família Chaplin, sem utilização de qualquer “voz off” e apenas com o ruído típico de um projetor de Super- 8 a trabalhar. Vemos Chaplin já na sua casa de Vevey, rodeado pela família e a brincar com os filhos, alguns ainda de muito tenra idade. Ria-se, pecava neles ao colo, punha-os aos ombros, fazia palhaçadas, caretas e passos de dança imitando Charlot. Depois, mesmo no final, Oona, a mulher, dava-lhe o braço e levava-o a passear pelo jardim até ao extremo da propriedade, e ele lá ia devagarinho, apoiado numa bengala e percebemos que já com alguma dificuldade no andar, até o filme acabar num fundido em negro.


Essas últimas imagens tocaram-me profundamente. Eu estava fragilizado e em processo de separação e não sei o que mais me terá comovido. Aquela bonança depois da tempestade que foram os últimos anos na América…? Aquela enorme sensação de harmonia familiar…? Aquele momento de ternura com a mulher a levar Chaplin pelo braço pela estrada fora, idêntica à que vimos no final de tantos filmes do Charlot…?  Ou ter-me-á o ruído do projetor Super-8 feito recordar as projeções que eu próprio fazia para as minhas filhas, quando eram mais pequenitas…?

Sinceramente, não sei… Talvez que tudo isso junto...


O que sei é que desatei a chorar que nem uma Madalena… Não que apenas me tivessem vindo lágrimas aos olhos, porque essas, felizmente vêem-me com muita facilidade no Cinema. Nada disso… Um profundo nó na garganta, a soluçar e a chorar compulsivamente…  Felizmente que a sala estava meio vazia e eu estava no meu habitual lugar lá mais para trás, senão teria passado pela vergonha de alguém se aproximar de mim e me oferecer ajuda…

Longe estava eu de imaginar que um dia, muitos anos mais tarde, na companhia da Cristina, também eu iria estar ali naquela mesma casa, naquele mesmo jardim e a percorrer aquele mesmo caminho que vira Chaplin fazer com a sua mulher.

É que, desde 2017, a antiga casa de Chaplin, bem como o espaço adjacente, foi transformada em museu sob a designação de “Chaplin’s World” e aberta ao público. Mas disso vos darei conta noutra oportunidade.

Em Vevey Chaplin não vivia como um eremita. Recebia a Família, os muitos amigos que tinha, as grandes personalidades que o desejavam visitar, muitas vezes sem aviso prévio. Todos os sábados, enquanto pôde, descia ao mercado em companhia da mulher, e não perdia uma ida ao Circo sempre que estre descia à cidade.

Segundo conta o seu filho Eugène (5), aquele cujo nascimento apressou a compra da casa, aos domingos ia quase sempre almoçar a este restaurante que aqui vos mostro, ”L’Auberge de l’Onde”,  em Lavaux, a poucos quilómetros de Vevey.


Almoçar no restaurante de Chaplin e, se possível, na mesa de Chaplin, teria sido, para mim, um desejo irresistível, não tivesse eu o enorme azar dele estar encerrado para férias na época de fim do ano, em que por lá passei.

Chaplin morreu no dia de Natal de 1977, com 88 anos, tendo passado vinte e quatro felizes anos em Vevey. Durante esse período escreveu uma “Autobiografia”, publicada em 1964, realizou mais dois filmes (“Um Rei em Nova Iorque”, em 1957, e “A Condessa de Hong Kong”, dez anos depois) viu nascer mais três dos oito filhos que teve com Oona. Nos últimos anos dedicou-se a compor as músicas que iriam acompanhar a reedição dos seus velhos filmes mudos. 

Deixo-vos com as últimas palavras que escreveu na sua “Autobiografia”, e também com um pôr do Sol no Lago Léman, que ele tanto gostava de comtemplar.        

“No meio de tamanha felicidade, sento-me às vezes no nosso terraço ao pôr do Sol, e comtemplo o vasto relvado verde e o lago ao longe, e para lá do lago as montanhas tranquilizadoras, e quedo-me sem pensar em nada, a gozar essa magnífica serenidade”. (6)

1.      Charles Chaplin, “Autobiografia”, tradução de António Lopes Ribeiro, Editora Ulisseia, (1965), pág. 460/461/462.

2.      Idem, pág. 536

3.      Idem, pág 549

4.      Idem

5.      Esta como outras informações respeitantes à casa foram retiradas de “Le Manoir de Mon Père”, Eugène Chaplin, Editions Ramsay, 2007

6.       Vd (1), pág. 564


Texto e fotografias de Luís Miguel Mira

domingo, 27 de fevereiro de 2022

POSTAIS SEM SELO


 Um fumador de cachimbo nunca está só.

sábado, 26 de fevereiro de 2022

CAFÉ


Era um espaço construído de olhares e de ruídos.
Antigo.
Delimitado pelo casulo da menina da tabacaria, com postigo para a rua, e o guarda-vento que lhe defendia a privacidade de gueto masculino.
As mesas dispunha-se ao longo das paredes.
Sublinhadas por fotografias desactualizadas, em conflito com a modernidade dos autocolantes.
Mesas privadas, e de vítima.
Infinitamente repetidas nos espelhos, que as devolviam aos interessados.
Tinha residentes:
o cauteleiro, que apregoava a felicidade avulsa, e um engraxador, de fato-macaco e sapatos cansados de mostrarem o brilho disponível dos seus gestos.
Sempre que podia, fazia-se ouvir com uma tira de pano de bilhar.
Afirmava-se, interrompendo as conversas dos senhores:
o médico, o advogado, o gerente do banco, o rico e o informador.
Também havia um artista.
Cafés sombrios e delatores, da Beira.
Ou catedrais de lavradores, como os de Évora, em dia de são porco.
Cresci neles, com uma onça de tabaco e um caderno, autorizado por um café de saco.
Nem todos foram pervertidos em bancos, ou travestidos em lugares de culto.
Mas entre as saudades do cheiro e do espaço, pondero a maldade e a arrogância da frequência.


Jorge Fallorca


sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

OLHAR AS CAPAS


Granta

Nº 4

Direcção e Editorial: Carlos Vaz Marques

Textos de Mia Couto, Ruy Duarte de Carvalho, António Cabrita

                  José Tolentino Mendonça, Lidia Jorge, Hélia Correia

Capa: Ruy Duarte de Carvalho

Edições Tinta-da-China, Lisboa, Outubro de 2014

Perguntam-me, com frequência, em que momento me tornei escritor. Habituei-me a não ter pressa em dar a resposta. Nem a essa nem a outras indagações. Aprendi com um personagem de uma história minha, que assegurava o seguinte: a diferença entre os sábios africanos e os sábios europeus é que os primeiros são os últimos a dar respostas. O facto é que vale uma certa demora: para pensar não apenas a resposta mas, antes dela, a própria pergunta. Como diria o meu mestre Rosa: Deus demora, mas não falha. No meu caso, Deus ainda não chegou.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

NÃO APRENDEMOS NADA!


 Já vivi tempo suficiente para saber que os diálogos que os políticos andaram, nos últimos dias, a desenvolver, para evitarem confrontos na Ucrânia, eram meras bazófias.

Porque para aquelas gentes o que conta é a guerra, a venda de armas.

Um pensamento simples: bastaria pouco mais de um ano, sem produzir armas, para se poder dar de comer a todo o mundo.

Vivem na fome, na doença e na ignorância milhões de seres humanos.

Apesar de a ciência e a técnica terem ajudado o homem, através dos, tempos, a transformar os seus padrões vida, temos sempre ao virar da esquina o contra senso, a loucura dos senhores da guerra.

Ninguém aprendeu nada com aquele estupor de bigodinho que começou por queimar livros e acabou a matar homens, ao que dizem as estatísticas 50 milhões de mortos.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

POSTAIS SEM SELO


 Mantém-se o facto de que o compreender as pessoas não tem nada a ver com a vida. O não as compreender é que é a vida, não compreender as pessoas, não as compreender, não as compreender, e depois, depois de muito repensar, voltar a não as compreender. É assim que sabemos que estamos vivos: não compreendemos. Talvez o melhor fosse não ligar ao facto de nos enganarmos ou não sobre as pessoas e deixar andar. Se conseguirem fazer isso – estão com sorte.

Philip Roth em Pastoral Americana 

UMA CHUVA DURA VAI CAIR?


 Tal como diria António Gedeão, sem sequer ser ouvido, saí do ventre da minha mãe, quando ainda pairavam nos ares, os últimos tiros de espingardas, os últimos tiros de canhões da Segunda Guerra Mundial.

Quem por aqueles tempos desce ao mundo, só poderia ser contra guerras.

Sejam elas quais forem.

Lembrar uma frase de José Saramago tirada de uma sua carta, datada de 15 de Maio de 1962 para José Rodrigues Migueis

«O mundo está muito complicado, mas não o acho suficientemente absurdo para perder a esperança.»

Para o bem e o mal o que hoje sou e penso, devo-o a muita gente.

Bob Dylan está metido nessa gente.

Apesar de um certo desencanto quando há uns bons anos apareceu por aí dizer que «A palavra mensagem é triste, triste como uma hérnia.», «Ninguém gosta de ser definido por aquilo que os outros pensam.», «Queria ter uma vida normal e poder levar os filhos à escola.»

Manuel António Pina num poema seu: «O café agora é um banco, tu professora de liceu; Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu. Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes, e não caminhos para andar como dantes.»

Lembro-me de uma conversa, nos idos de 67, com um dos colaboradores do Em Órbita, falha-me, agora, o nome, quando, a determinada altura, disse-me  de Dylan: é um narcisista convicto, um genial cabotino, no sentido intelectual do termo.

 Fiquei, assim meio aparvalhado, a olhar para ele, manifestei-lhe o meu desacordo e acrescentei que a definição ainda poderia ser entendida por gente que lesse ou ouvisse Dylan aprofundadamente, mas não pelo vulgar ouvinte.

 O meu interlocutor viu, de repente, que não valia buscar outros argumentos, perder mais tempo com o ceguinho que eu, era por Dylan.

E ele sabia, porque lia e ouvia Dylan atentamente, que chegariam os tempos dos órfãos de Mr. Zimmerman e eu ficava-me ingenuamente convencido que. com Dytan, tinha respostas para (quase) tudo.

Bom, teremos sempre Joan Baez a dizer de Dylan:

« Ele é o ser humano mais complexo que conheci. Eu pensei que seria capaz de entendê-lo. Desisti. Tudo o que sei é o que ele nos deu.»

Porque, para além de mágoas e miudezas, tudo o mais, existe uma verdade inquestionável: Bob Dylan fez das mais belas canções da história da música, canções que se podem ouvir em qualquer tempo e fez com que muitos passassem a olhar, de um outro modo, os tempos que se exigia que mudassem.

Nestes dias que vão correndo, pegar no segundo álbum de Bob Dylan, The  Freewheelin’Bob Dylan (1963) que tem Blowin’in the Wind – quantas mortes serão precisas até que saiba que demasiadas pessoas morreram - e  Masters of War que irei reproduzir. Outra faixa do álbum é a Hard Rains A –Gonna Fall que reflecte a angústia, em Outubro de 1962, que Dylan sentiu aquando dos misseis de Cuba, braço de ferro entre Kennedy e Khrushchev, ao ponto de pensar não lhe restar muito mais tempo para escrever outras canções.

A tradução da canção é de Angelina Barbosa e Pedro Serrano em Canções Volume I:


Vinde, senhores da guerra

Vós que construís todas as armas

Vós que construís os aviões da morte

Vós que construís as grandes bombas

Vós que vos escondeis atrás de muros

Vós que vos escondeis atrás de secretárias

Eu só quero que vocês saibam

Que consigo ver através das vossas máscaras

 

Vós que nunca fizestes nada

Senão construir para destruir

Vós brincais com o meu mundo

Como se fosse o vosso brinquedinho

Vós colocais-me uma arma na mão

E escondei-vos dos meus olhos

E virais as costas e fugis para bem longe

Quando voam as balas velozes

 

Como o Judas de outrora

Vós mentis e enganais

Uma guerra mundial pode ser ganha

Vós quereis que acredite

Mas vejo através dos vossos olhos

E vejo atrvés da vossa mente

Como vejo através da água

Que se escoa pelo cano abaixo

 

Vós firmais os gatilhos

Para os outros dispararem

Depois recuais e ficais a ver

Quando a contagem de mortes se eleva

Vós escondei-vos na vossa mansão

Enquanto o sangue dos jovens

Lhes escorre dos corpos

E se enterra na lama

 

Vós lançastes o pior dos medos

Que alguma vez se pode proferir

Medo de trazer filhos

Ao mundo

Por ameaçardes o meu filho

Por nascer e sem nome

Não valeis o sangue

Que vos corre nas veias

 

Quando é que eu sei

Para falar o que não devo

Vós podeis dizer que sou ignorante

Mas uma coisa há que eu sei

Ainda que seja mais novo que vós

Nem mesmo Jesus jamais

Perdoaria o que fazeis

 

Deixai-me fazer-vos uma pergunta

O vosso dinheiro é assim tão bom

Comprar-vos-á o perdão

Achais que poderia

Penso que descobrireis

Quando a vossa morte vier cobrar o seu direito

Que todo o dinheiro que ganhastes

Jamais vos resgatará a alma


E espero que vocês morram

E a vossa morte chegue depressa

Seguirei o vosso caixão

Na pálida tarde

E ficarei a ver até vos baixarem

Ao vosso leito de morte

E vou vigiar a vossa campa

Até ter a certeza que estai mortos

 


NÃO DISSE NADA

Não disse nada amor, não disse nada
Foi o rio que falou com a minha voz
A dizer que era noite e é madrugada
A dizer que eras tu e somos nós

A dizer os mil rostos de Lisboa
Ao longo do teu rosto, se te beijo
À luz de um pombo, chamo Madragoa
E Bairro Alto ao mar, se te desejo

Não dissse nada amor, juro, calei-me
Foi uma voz que ao longe se perdeu
Cuidei que era Lisboa e enganei-me
Pensei que éramos dois e sou só eu

António Lobo Antunes

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

O VISIONÁRIO OU SOM E COR

Alucina-me a Cor! - A Rosa é como a Lira,
A Lira pelo tempo há muito engrinaldada,
E é já velha a união, a núpcia sagrada,
Entre a cor que nos prende e a nota que suspira.

Se a terra, às vezes, brota a flor que não inspira
A teatral camélia, a branca enfastiada,
Muitas vezes, no ar, perpassa a nota alada
Como a perdida cor de alguma flor que expira...

Há plantas ideais de um cântico divino,
Irmãs do oboé, gémeas do violino,
Há gemidos no azul, gritos no carmesim...

A magnólia é uma harpa etérea e perfumada.
E o cacto, a larga flor, vermelha, ensanguentada,
- Tem notas marciais, soa como um clarim. 

Gomes Leal

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

POSTAIS SEM SELO


«Senhor que a minha vida seja permitir a infância
embora nunca mais eu saiba como ela se diz» 

Ruy Belo em Homem de Palavra(s)

Legenda: fotografia Shorpy

O ALENTEJO É ASSIM


Quem me conhece sabe de uma velha frase: «Não sou alentejano mas gostava de ser.»

No seu Diário Inédito, Vergílio Ferreira conta uma história sobre alentejanos.

Ele escreveu história e não anedota, note-se.

«Évora, 10 de Abril de 1949

O meu amigo A.M. contou-me esta história:

Um dia, num passeio pelo campo, deserto, encontrou ele um homem sozinho, sentado numa pedra, imóvel, como abandonado ao correr do tempo.

- Ora boa tarde. Então que faz vossemecê por aqui?

- Que faço… Vinha com um camarada que foi aí adiante. Disse-me que demorava pouco e já aqui estou à espera há três dias.

O Alentejo é assim.»

Este Diário Inédito corresponde a uma diarística que Vergílio Ferreira escreveu entre 1944 e 1949, e que regista a evolução do autor como futuro escritor (estes textos quase diários começam com a idade de 26 anos e terminam aos 32 anos, a 20 de Janeiro de 1949 revela que concluiu o romance Mudança «não sei bem se o tema interessará mas a mim diz-me muito, talvez por ter ainda à sua roda o calor com que o escrevi») e que se podem considerar a base dos futuros Conta-Corrente.

São os tempos em que anda à volta de filósofos como, entre outros) Hegel, Kirkegaard, Gabriel Marcel, Julien Benda mas principalmente Jean-Paul Sartre.

Entrada diarística de 21 de Março de 1944:

«Curiosa é a ignorância repousada dos nossos modernistas. Eles clamam por Sartre.Mas saberão que Sartre prega a verdade feita pelas mãos de cada um? Ou já sabem que o que vale em Sartre não e o que ele prega mas o que desgraçadamente realiza? Em todo o caso, vou rachar estes tipos qualquer dia, com um artigo.» 

RELACIONADOS

 Na Biblioteca do meu Pai não existia nenhuma Enciclopédia.

Também nunca adquiri nenhuma.

Mas existia uma série de volumes de Cadernos e Colecções que abrangiam uma série de gente qualificada a escrever sobre  autores e assuntos diversos.

Muitos desses volumes pertenciam à Biblioteca Cosmos que foi um projecto excepcional criado e orientado por Bento de Jesus Caraça.

Rómulode Carvalho, mais conhecido como o poeta António Gedeão, conta nas suas Memórias que colaborou com obras suas nesta excelente Biblioteca Cosmos.

Publicarei nos próximos dias outros volumes (Cadernos da Seara Nova, Cadernos da Editorial Inquérito) que me ajudaram na formação de um certo sentido de Cultura Geral que, possivelmente, qualquer enciclopédia não daria.

Ramiro da Fonseca, médico e escritor, manteve, nos anos 70, na RTP o programa «Vida Sã em Corpo São».  

OLHAR AS CAPAS


 A Reprodução Nas Plantas, Nos Animais E No Homem

Ramiro da Fonseca

Biblioteca Cosmos nº 106/107

Edições Cosmos, Lisboa, Maio de 1946

A primeira e fundamental noção que temos de ter presente e da constituição celular de todos os seres vivos. Todos os seres vivos (à parte algumas excepções, de resto discutíveis) são constituídos por elementos morfológica e funcionalmente independentes e funcionalmente independentes, denominados células. 

REMEMBER

    

Recorda-te de mim quando eu embora
For para o chão silente e desolado;
Quando não te tiver mais a meu lado
E sombra vã chorar por quem me chora.

Quando não mais puderes, hora a hora,
Falar-me no futuro que hás sonhado,
Ah de mim te recorda e do passado,
Delícia do presente por agora.

No entanto, se algum dia me olvidares
E depois te lembrares novamente,
Não chores: que se em meio aos meus pesares

Um resto houver do afeto que em mim viste,
– Melhor é me esqueceres, mas contente,
Que me lembrares e ficares triste.

Christina Rossetti

Tradução de Manuel Bandeira

domingo, 20 de fevereiro de 2022

POSTAIS SEM SELO


 O momento mais sensato para deter o mar é quando o mar já partiu.

Emily Dickinson