sábado, 3 de fevereiro de 2024

VIAGENS POR ABRIL


                 Este não é o dia seguinte do dia que foi ontem.

                 João Bénard da Costa

 

Será um desfilar de histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias, figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação do dia, mês, ano em que aconteceram.

 

Ele há-de trazer algumas histórias em que andou metido nos tempos em que esperávamos (quem? quantos? Como, então, apareceram tantos a gritar por Liberdade, a dizerem-se democratas?) pela tal madrugada.

Por madrugada, lembrará, agora, o que leu num comentário à morte de Melanie Safka publicada no Público e um deste dias há-de recordar, sobre Melanie Safka, uma crónica do José Duarte.

«A sua intervenção não se esgotou na música. Cresci a ouvi-la - e foi a única artista estrangeira que explicou ao mundo o conceito de "Madrugada": dizia ela que os portugueses eram os únicos que tinham uma palavra para descrever aquele tempo suspenso entre a noite e o dia, um tempo grávido de sentido. Faz falta.»

 

ZIP 30.020/S - 1971

Pare, Escute e Olhe - Arte Poética

Um muito interessante "single" do pré-25 de Abril, que reuniu algum sucesso popular, comprado na então sucursal da “Discoteca Roma”, na Rua Morais Soares, esquina com a Praça Paiva Couceiro (em Lisboa) e produzido por "Zip-Zip".

A loja, com duas simpatiquíssimas e competentes empregadas, não resistiu aos tempos de Abril e fechou. Mais tarde  a casa-mãe também fechou as portas na Av. de Roma. Para não variar instalou-se lá uma agência bancária e agora é café a armar ao fino.

À época, e ao nível da pequena banheira onde vivíamos (vivemos), este disco originou uma leve e doméstica polémica, qualquer coisa como mosquitos por cordas.

Por uma estranha omissão (tipográfica ou qualquer outra) não consta da ficha do disco o nome de Hélia Correia como autora do poema “Arte Poética”, face B do "single".

O disco revela apenas o nome de José Jorge Letria e daí poder inferir-se que Letria é o responsável, não só da música, como da letra.

O suplemento “Juvenil” do jornal “República” de 19 de Outubro de 1971, fazia publicar um “Para Que Conste” em que o facto é denunciado e, ao mesmo tempo, se revelava que “mesmo em espectáculos públicos não tem feito Jorge Letria qualquer alusão ao nome de Hélia Correia” e exigia-se a respectiva rectificação e invocavam-se direitos de autor e reprodução.

Já que estamos em maré de documentos e curiosidades, diga-se que, na contracapa do disco, José Jorge Letria fez publicar um texto de sua autoria: “É do Silêncio Que Vos Falo” e que aqui se reproduz:


“Foi mais de um ano de silêncio (depois do primeiro disco-fracassado). Mais de um ano de silêncio inteiramente assumido. Voluntariamente aceite. É fora dos circuitos normais (televisão, rádio, promoção, venda) que, dolorosamente, sem trincheiras nem disfarces, se descobrem os amigos (?), que se aprende a abominar a hipocrisia e a falsa coerência, a miséria das intenções, a ignorância das coisas elementares.

"É no silêncio (um certo silêncio, entenda-se), que se descobre a utilidade das palavras. O seu fogo. A sua forma exacta. A sua acutilante facilidade de chegar onde mais ninguém chega. E ao mesmo tempo a sua infinita pobreza. A sua enorme timidez. Sim, porque as palavras são tímidas. Haverá alguém que duvide?

"Para mim conservo a certeza de que está tudo ainda por fazer. Não são meia dúzia de discos ou de frases publicitárias, publicamente ditas, que definem uma música e lhe dão a necessária consistência. Desfaçam-se pois os equívocos. Já não é sem tempo. A quem me ouvir deixo, entretanto, a possibilidade de transformar em acto (ou quase) o que no canto se propõe. Se isso não acontecer fico, pelo menos, com a certeza de ter levado até ao fim a minha ingenuidade. Ou seja o silêncio donde partiu. Para os que ficarem pelo caminho vai também a minha saudação.” 

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