domingo, 18 de fevereiro de 2024

EM BUSCA DE FLORES AZUIS NO DESERTO


A voz é fraca. É uma criança palestiniana de 6 anos a sussurrar ao telemóvel. “O tanque está perto de mim. Aproxima-se.”

Sentada no centro de atendimento do Crescente Vermelho Palestiniano, o equivalente à Cruz Vermelha, a operadora Rana Faqih tentou manter a voz calma.

“Está muito perto?”

“Muito, muito”, respondeu a criança. “Estou com muito medo. Vem-me buscar?”

Assim começa o relato da BBC da gravação da comunicação entre uma criança de 6 anos e os Serviços de Emergência médica palestinianos.

Hoje, já sabemos que a criança, Hind Rajab, está morta. O seu corpo só apareceu 12 dias depois. O carro em que seguia com a sua família foi atacado por tropas israelitas e todos os ocupantes foram mortos.

Eram civis, como a maioria dos mais de 29 mil palestinianos mortos depois da invasão de Gaza.

Tudo se passou no dia 29 de janeiro. Eram 14.30 na Palestina. Uma família fugia de carro de uma zona que estava a ser atacada pelas IDF (Forças de Defesa Israelitas). Começaram a ser metralhados. Um dos adultos no carro fez uma chamada de socorro que caiu depois de se ouvir o som da metralha.

Os operadores do call center do Crescente Vermelho em Ramallah ligaram para o número do telemóvel  do tio de Hind, mas foi a filha dele de 15 anos, Layan, que atendeu.

Na gravação, Layan diz à equipa do Crescente Vermelho que os pais e irmãos estão mortos e que há um tanque ao lado do carro. “Estão a disparar contra nós”, afirma, antes de a conversa terminar com novo som de tiros e gritos.

Quando a equipa do Crescente Vermelho liga de volta, é Hind quem atende, com a voz quase inaudível, tomada pelo medo.

Fica claro que ela é a única sobrevivente no carro e que este ainda está sob fogo.

 “Esconda-se debaixo dos assentos”, orienta a equipa do Crescente Vermelho. “Não deixe ninguém vê-la.”

A operadora Rana Faqih permaneceu na linha com Hind cerca de três horas, enquanto o Crescente Vermelho pedia ao Exército israelita que permitisse que uma ambulância tivesse acesso ao local para socorrer a criança.

“Estava a tremer, triste, a pedir ajuda”, lembrou Rana. “Disse-nos que (os familiares dela) estavam mortos. Mas depois descreveu-os como ‘dormindo’. Então dissemos, ‘deixe-os dormir, não os queremos incomodar’.”

Hind continuou a pedir, repetidamente, que alguém fosse buscá-la.

“A certa altura, disse que estava a escurecer”, contou Rana à BBC. “Estava com medo. Perguntou-me a que distância ficava a minha casa. Senti-me paralisada e inútil.”

Depois de obter uma autorização das tropas israelitas, uma ambulância com dois socorristas dirigiu-se para o local para resgatar Hind. Tinham-se passado três horas.

Já anoitecia quando a equipa da ambulância informou que estava a chegar ao local e prestes a ser revistada pelas forças israelitas.

Esta foi a última vez que os dois paramédicos, que faziam o resgate, falaram para o Crescente Vermelho, segundo relata a notícia da emissora pública francesa RFI.

Hind Rajab, a menina palestina de 6 anos que ficou presa num carro, em Gaza, foi encontrada morta, a 10 de fevereiro, ao lado de cinco familiares mortos.

Os corpos dos dois paramédicos que tinham ido resgatá-la também foram descobertos perto, ao lado dos destroços da ambulância em que trabalhavam.

O porta-voz do departamento de Estado dos EUA, Matthew Miller, garantiu à comunicação social que o Governo norte-americano pediu, ao Governo israelita, que fosse esclarecido este “incidente”.

Este “incidente” faz parte de um genocídio que se passa com o nosso silêncio demasiado ruidoso. A nossa indignação é seletiva. Há gente que nós achamos que é normal ser morta, a quem não lhes atribuímos a categoria de humanos. Inventamos justificações criativas para varrer os corpos e o sangue para debaixo do tapete. Façam o favor de não incomodar os assassinos.

Nuno Ramos de Almeida, hoje, no Diário de Notícias

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