sábado, 17 de fevereiro de 2024

O OUTRO LADO DAS CAPAS



Alguns dos livros da Biblioteca da Casa, que narram vivências do que se passou na Guerra Colonial, têm sido, por aqui,  apresentados. São variados e alguns de difícil catalogação. Não sendo um especialista posso, no entanto, dizer que o primeiro livro sobre a Guerra Colonial,  por aqui apresentado, terá sido Os Cus de Judas de António Lobo Antunes:

«- Felizmente a tropa há-de torná-lo um homem.
Esta profecia vigorosa, transmitida ao longo da infância e da adolescência por dentaduras postiças de indiscutível autoridade, prolongava-se em ecos estridentes nas mesas de canasta, onde as fêmeas do clã forneciam à missa dos domingos um contrapeso pagão a dois centavos o ponto, quantia nominal que lhes servia de pretexto para expelirem, a propósito de um beste, ódios antigos pacientemente segregados. Os homens da família, cuja solenidade pomposa me fascinara antes da primeira comunhão, quando eu não entendia ainda que seus conciliábulos sussurrados, inacessíveis e vitais como as assembleias de deuses, se destinavam simplesmente a discutir os méritos fofos das nádegas da criada, apoiavam gravemente as tias no intuito de afastarem uma futura mão rival em beliscões furtivos durante o levantar dos pratos. O espectro de Salazar pairava sobre as calvas pias labaredazinhas de Espírito Santo corporativo, salvando-nos da ideia tenebrosa e deletéria do socialismo. A PIDE prosseguia corajosamente a sua valorosa cruzada contra a noção sinistra de democracia».

Hoje, apresentámos HendaXala ,editado em 1984, pela Editora Ulmeiro que, ao tempo, nunca encontrei em qualquer livraria e que só viria a conhecer, em 1992, na edição do Círculo de Leitores.

Um livro notável que passou completamente despercebido.

Se o apanharem em qualquer alfarrabista, ou feiras de ocasião, não hesitem: leiam-no!

Aliás, tirando meia dúzia, a maior parte dos livros, relatando as experiências da guerra colonial, passaram quase clandestinamente pelas livrarias. Fossem escritos por jogadores de futebol, ou «pivôs» de televisão… outro galo cantaria.

Terminarei com uma referência envolvida num qualquer tom de  melancolia-saudade.

O pai do escritor Abílio Teixeira Mendes, pai do cantor Carlos Mendes e do médico  Jaime Mendes, também ele Abílio Mendes, foi meu pediatra com consultório na Travessa do Calado.

Muitas vezes a minha mãe recebia um telefonema do consultório em que a assistente informava que o Dr. não daria a próxima consulta, que estava marcada, porque teve inesperadamente de viajar. A viagem tinha a ver com a PIDE que, mais uma vez, prendera o Dr. Abílio Mendes e o enviara para os calabouços de Caxias.

« Licenciado em Medicina dias antes de rebentar a Guerra Civil de Espanha, a sua entrada na vida profissional foi marcada por uma fase de grande repressão interna e de uma surda marginalização.

Concorreu, por duas vezes, aos Hospitais Civis tendo ficado sempre bem classificado, o que lhe permitiria a admissão imediata na carreira hospitalar mas foi, no entanto, excluído por decisão ministerial, o que o impediu de entrar não só na carreira hospitalar mas também na carreira universitária. Como escreveu no seu próprio curriculum: “ (…) considero-me honrado por ter sido impedido de tomar posse por informações da polícia política e da Legião Portuguesa”

Abílio Mendes ficou assim obrigado a fazer a sua formação de Pediatra, primeiro em Santa Marta e depois no Hospital Dona Estefânia, em regime de voluntariado, tendo sido posteriormente convidado pelo Professor Carlos Salazar de Sousa para Assistente Livre de Pediatria.

Com esta equipa, na Faculdade de Medicina, Abílio Mendes abriu o Serviço de Pediatria do Hospital de Santa Maria, continuando no entanto sempre impedido pelo regime de entrar nos quadros destes Hospitais, onde dedicou muitos anos da sua vida profissional sem qualquer remuneração».

A Câmara Municipal de Lisboa prestou homenagem ao Dr. Abílio Mendes atribuindo o seu nome a uma rua da Freguesia de São Domingos de Benfica.



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