terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

DESENHO


Fui morena e magrinha como qualquer polinésia,
e comia mamão, e mirava a flor da goiaba.
E as lagartixas me espiavam, entre os tijolos e as
trepadeiras, e as teias de aranha nas minhas árvores se entrelaçavam.


Isso era num lugar de sol e nuvens brancas,
onde as rolas, à tarde, soluçavam mui saudosas. . .
O eco, burlão, de pedra em pedra ia saltando,
entre vastas mangueiras que choviam ruivas horas.


Os pavões caminhavam tão naturais por meu caminho,
e os pombos tão felizes se alimentavam pelas escadas,
que era desnecessário crescer, pensar, escrever poemas,
pois a vida completa e bela e terna ali já estava.


Com a chuva caia das grossas nuvens, perfumosa!
E o papagaio como ficava sonolento!
O relógio era festa de ouro; e os gatos enigmáticos
fechavam os olhos, quando queriam caçar o tempo.


Vinham morcegos, à noite, picar os sapotis maduros,
e os grandes cães ladravam como nas noites do Império.
Mariposas, jasmins, tinhorões, vaga-lumes
moravam nos jardins sussurantes e eternos.


E minha avó cantava e coisa. Cantava
canções de mar e de arvoredo, em língua antiga.
E eu sempre acreditei que havia música em seus dedos
e palavras de amor em minha roupa escritas.


Minha vida começa num vergel colorido,
por onde as noites eram só de luar e estrelas,
Levai-me aonde quiserdes! – aprendi com as primaveras
a deixar-me cortar e a voltar sempre inteira.

 

Cecília Meireles de Mar Absoluto em Antologia Poética

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