sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

VIAGENS POR ABRIL


                 Este não é o dia seguinte do dia que foi ontem.

                 João Bénard da Costa

 

Será um desfilar de histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias, figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação do dia, mês, ano em que aconteceram.

 Jorge de Sena , por motivos óbvios, também variados, amiúde há-de visitar estas Viagens por Abril.

Hoje, transcreve-se o poema «AOS CINQUENTA ANOS…» que pertence ao livro «Tempo de Exorcismos» (1970-1972) e que na Biblioteca da Casa existe em 40 ANOS DE SERVIDÃO 2ª edição, Setembro de 1982.

 

Aos cinquenta anos sou um ser perplexo,
não como aos vinte, aos trinta, ou aos quarenta,
mas radicalmente perplexo. Não sei
se amo a vida ou a detesto. Se desejo
ou não desejo continuar vivendo.
Se amo ou não amo aqueles que amo,
se odeio ou não odeio os que detesto.
Se me quero patriarca, pai de família, como acabei sendo,
ou se me quero livre pelas ruas nocturnas
como quando não acabei de descobri-las
em décadas de andá-las, perseguindo
sequer o amor mas corpos, corpos, corpos.
Sou de Europa ou de América? De Portugal
ou Brasil? Desejo que toda a humanidade
seja feliz como queira, ou quero que ela morra
do cogumelo atómico prometido e possível?
Não sei. Definitivamente, não sei.
Julgas que estou deitado num leito de rosas?
— perguntava ao companheiro de tortura Cuauhtemoc(1).
Mas, mesmo destituído, preso e torturado,
ele era o Imperador, descendente dos deuses.
Eu não descendo dos deuses. O corpo dói-me,
que envelhece. O espírito dói-me de um cansaço físico.
As belezas de alma, seja de quem forem, deixaram de interessar-me.
Resta a poesia que me enoja nos outros
a não ser antigos, limpos agora do esterco
de terem vivido. E eu vivi tanto
que me parece tão pouco. E hei-de morrer
desesperado por não ter vivido. Aos 50 anos
nem sequer a raiva dos outros ainda me sustenta
o gosto e a paciência de estar vivo.
Outros que tentem e descubram:
que digam ou não digam é-me indiferente.

 

Junho 15, 1970

Legenda: pintura de René Magritte

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