A crónica de Ana Cristina Leonardo está publicada no Público de 19 de Janeiro e tem por título:
Camões, zero, Ventura, um
«É incompreensível que os 500 anos do nascimento do nosso maior poeta tenham passado em branco.
Imagine-se que Espanha esquecia Cervantes. Imagine-se que a França esquecia Balzac. Inglaterra, Shakespeare. A Suécia, Strindberg. A Alemanha, Goethe. A Irlanda, Joyce. Itália esquecia Dante. A Noruega, Ibsen. A Rússia (e os zulus), Tolstoi. A Argentina esquecia Borges. Cuba, José Martí. O Brasil, Machado de Assis. Os Estados Unidos esqueciam Mark Twain. A Índia esquecia Tagore. A China esquecia Li Bai. E por aí adiante até se esgotarem a geografia e as bibliotecas.
Se nos lembrarmos que do cante alentejano à festa dos tabuleiros de Tomar, da dieta mediterrânea ao fado, passando pela falcoaria, das festas do povo de Campo Maior ao Carnaval de Podence, em Trás-os-Montes, passando pelo artesanato em barro de Estremoz – todas essas inscrições no Património Cultural Imaterial da Humanidade (categoria criada pela UNESCO em Outubro de 2003, activada em 2006 e que visa “a salvaguarda, respeito, sensibilização a nível local, nacional e internacional, do património cultural imaterial das comunidades, grupos e indivíduos, bem como a cooperação e o auxílio internacionais, no quadro de um mundo cada vez mais globalizado que ameaça uniformizar as culturas e aumentar as desigualdades sociais”) motivaram uma onda de patriotismo talvez só ultrapassada pela vitória de Portugal no Festival Eurovisão da Canção de 2017, momento inesquecível que Marcelo Rebelo de Sousa inscreveria nos anais da nossa história com a célebre frase: “Os portugueses ficaram com mais vinte centímetros”…
Indo directly to the point: face ao entusiasmo que toma de assalto todo e
qualquer português quando ouve falar em pastéis de nata vendidos em Singapura
ou em Manhattan, torna-se ainda mais incompreensível que os 500 anos do
nascimento do nosso maior poeta tenham passado em branco e não serve de
desculpa o passado surfista do ministro da Cultura, pois que entre a prática
milenar de caminhar sobre as águas e a literatura não existe qualquer
contradição, sabendo-se, aliás, que seria o afamado escritor (e aventureiro)
norte-americano Jack London o grande divulgador na Califórnia do “desporto dos
reis” (tal como era apelidado no Havai) – e da Califórnia haveria de chegar à
Nazaré –, nomeadamente com a publicação em 1907 de A Royal Sport: Surfing in
Waikiki, praia onde o próprio havia aprendido a cavalgar as ondas. Mas de tudo
isto estará o ministro ciente…
2024: dois aniversários de monta. O do 25 de Abril e o de Luís de Camões. Ambos
números redondos. O primeiro faz 50 anos; o segundo faz 500.
Do 25 de Abril, pertenço à última geração a quem foi sonegada a leitura de A
Ilha dos Amores e que teria idade para não só se lembrar conscientemente da
data, mas também ter participado na festa (porque de uma festa se tratou! – não
tenhamos dúvidas). Quando nos formos – os da minha geração – o 25 de Abril
acabará inevitavelmente transformado numa espécie de 5 de Outubro, na pompa e
na circunstância, que é o que está sempre reservado aos acontecimentos
históricos (não tenhamos dúvidas).
Ao contrário dos cravos, que sempre fenecem – os de plástico não contam –,
Camões é eterno! Nunca, jamais, em tempo algum e enquanto for vivente um
representante da espécie humana deixaremos de nos comover com isto:
Um Camões profundo, um Camões dramático e dividido, um Camões subversivo e revolucionário, em tudo um homem do nosso tempo, que poderia juntar-se ao espírito da Revolução de Abril de 1974”, diria aquele que descrevendo Portugal versejou: “terra de escravos cu pró ar ouvindo/ ranger no nevoeiro a nau do Encoberto” no seu excelente discurso proferido na Guarda a 10 de Junho de 1977, sem se esquecer sequer de adicionar ao retrato do poeta certeira ferroada: “Esse meu Camões foi longamente o riso dos eruditos e dos doutos, de qualquer cor ou feitio; foi a indignação do nacionalismo fascista, dentro e fora das universidades, dentro e fora de Portugal; foi a aflição inquieta do catolicismo estreito e tradicional, dentro e fora de Portugal; e foi a desconfiança suspeitosa de muita gente de esquerda, a quem eu oferecia um Camões que deveria ser o deles, quando eles preferiam atacar ou desculpar o Camões dos outros”.
Em síntese: feita a ressalva (sublinho de novo a Alemanha nazi…), não me parece de espantar que um país que esquece os 500 anos do seu poeta maior seja o mesmo onde tanto se fala e analisa as teses de Ventura, o evangélico. Sem esquecer que é o mesmo onde tanto se discute o que fazer ao desossado Eça. Ou ainda – e que não sejam perdoados porque sabiam o que faziam – o país que vendeu a língua por um prato de lentilhas!
Temos, claro, o sol e o mar e a gastronomia. No meu caso, nem me posso queixar. Tenho vizinhos adoráveis que, embora pouco dados à poesia, me obsequiam com azeite, tangerinas, abóboras e couves, variáveis que se vão adequando à época. Tenho espaço largo e silêncio.
Faltará a água. Mais velhos morrerão sozinhos. Os jovens continuarão a partir e as crianças a não nascer. As carrinhas de legumes e de pão deixarão de se fazer ouvir. Os parques fotovoltaicos tomarão conta do que resta da paisagem, cenários lunares despidos de pessoas (um parque de 42 hectares dá trabalho a três funcionários).
E quem não vê relação entre o estado da cultura e o “estado a que isto chegou”, remeto para outro poeta, no caso Eduardo Guerra Carneiro, que há anos deu como título a um livrinho de versos, Isto Anda Tudo Ligado, frase que, pelo menos desde os gregos antigos, se sabe ser verdadeira.»
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