Fanga
Alves Redol
Capa: Fred
Kradolfer
Portugália
Editora, Lisboa, 1943
De inverno há um entretenimento na Golegã – ver a
cheia nas Praias e medir pelo Dique dos Vinte se a água sobe ou desce. Não há
trabalho e os homens vêm para o pontão falar da ruína daqueles dias, enquanto
os rapazes chafurdam por todos os cantos, onde há lama e água.
O Tejo começa a engrossar, galga para os areais das
margens vai crescendo e invade tudo. No plaino que vai da Baralha ao rio, não
fica um palmo de terra de sementeira fora de água. Só a estrada lembra aos
homens que ali foi caminho de gente. As hortas e os vinhedos desaparecem e tudo
fica como um grande rio, no meio do qual se levantam as faias e os eucaliptos,
os salgueiros e os choupos. A rama dos canaviais afunda-se e acaba-se o pasto
para os animais e a lenha para os homens. A alverca só se conhece pelas árvores
que a circundam, e mulher alguma se atreve a ir lavar a roupa para aqueles
lados. A Chamusca e a Golegã parece que ficam suspensas no Tejo, tanto o rio lhes
babuja as casas.
É quási todos os anos assim. Mas naquele ano foi a
cheia maior de todas, pelo menos para a minha casa.
De cima chegavam as notícias de sempre. Com as chuvas
de Espanha, o Tejo vinha mesmo com cara de quem ia ferrar partida. Muito barrento,
ruidosos, correndo mais depressa do que nunca, já começara a devastar campos na
Barquinha e em Constança. Dos sítios, mais próximos das margens, começou a
tirar-se tudo o que que se podia salvar. Abandonaram-se casas, mudaram-se
palhas, passou-se gado para lugares mais altos. Os homens que vivem do deu
braço já não se lamentavam, porque o costume repetido os habitua. A cheia faz
parte da nossa vida. É uma desgraça igual a muitas outras, como a falta de
trabalho ou pouca comida na malga.
Sem comentários:
Enviar um comentário