A Morte do Palhaço e o Mistério da Árvore
Raul Brandão
Capa: Sebastião
Rodrigues
Biblioteca
Básica Verbo/RTP nº 73
Editorial Verbo,
Lisboa, 1972
Vivia num ambiente falso e fora da realidade. De tanto
sonhar não podia senão sonhar. Às vezes exclama de si para si, quando saía por
acaso da atmosfera em que vivia submerso: – Valeu a pena? Valeu a pena? Estou
cansado, exasperado, depois de uma velhice de fome e de misérias, com longas
horas de ódio e olhares hipnóticos sobre a felicidade dos outros. A mocidade
sobretudo fere-me. Eu nunca fui moço, nem nunca fui amado, e que fingidos risos
de indiferença, que me fazem doer as faces, tenho pelo que chamo banalidades –
saúde, amores, ter vida! Até chegar a ser Palhaço, quantas profissões! Actor,
cocheiro de praça e mendigo. Da existência de noctâmbulo ficara-lhe um morcego
a esvoaçar-lhe no crânio. Por fim, veio trabalhar para o circo. Só saía de
noite. De dia ficava no covil do 4.º andar, ruminando pedaços de sonho gastos e
esquecidos.
Esta noite encontrei-o enforcado numa oliveira, num
arredor da cidade. O luar escorria sobre a ravina, e naquele sítio desolado,
triste e inquietante, ele era cómico, pendurado na árvore, mais esguio, a calva
a luzir-lhe como uma hóstia, mole, repugnante e coçado. Diário? Nem este
velho bêbado teve nunca diário! Foi decerto para se dar ares de incompreendido
que deixou estas folhas ao pé da árvore. Como se a sua miséria fosse diferente
das outras misérias! Escorraçado e azedo, perseguiam-no como um lobo, até que o
fizeram andar com fome e morrer como merecia…
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