domingo, 24 de abril de 2016

SARAMAGUEANDO


Com Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago, a nova Colecção dos Livros RTP não poderia começar melhor.

A edição tem prefácio de Zeferino Coelho, seu editor desde 1979, ano da publicação da peça de teatro A Noite.

Um texto curto, simples e conciso, mas que denota o amor pelo homem e pelo escritor que ninguém queria editar.

Mas ele acreditou no homem e no escritor, no amigo e no camarada.

Recorde-se que a Bertrand recusou a publicação de Levantado do Chão e, mesmo Nelson deMatos, a atravessar momentos difíceis na Moraes, também amigo e camarada de José Saramago, não conseguiu dar a volta ao texto.

Louve-se Zeferino Coelho pelo risco e a ousadia.

José Saramago era, do ponto de vista de um editor, por vários motivos, o escritor ideal. Por exemplo: aí por janeiro ou fevereiro telefonava-me e dizia: “Este ano tens livro novo. Conta com ele lá para o final de Julho. Podes programar as coisas para ele sair em outubro,” Nunca falhou. Por vezes adiantava-se ou atrasava-se uma ou duas semanas no máximo.

O Ensaio Sobre a Cegueira, na opinião de Maria Alzira Seixo, é um livro impressionante, de leitura muito incómoda, mas que nos mantém presos até à última página, no dizer de Baptista-Bastos, uma verdadeira descida aos infernos e, Saramago, ao terminar o romance, escreveu nos seus Cadernos de Lanzarote:


…pensá-lo, fazê-lo, sofrê-lo, já foi, como tinha de ser, obra de transpiração.



Tal como consta dos seus cadernos de capa preta, a ideia do livro ocorreu a Saramago, no dia 6 de Setembro de 1991, enquanto esperava que lhe servissem o almoço no restaurante Varina da Madragoa:

A pergunta que faz a si mesmo: E se nós fôssemos todos cegos?

De imediato saiu-lhe a resposta: Mas nós estamos todos cegos.

Mais tarde escreverá:

Estamos cada vez mais cegos porque cada vez menos queremos ver.

Numa entrevista a Maria Leonor Nunes, publicada no JL de 25 de Outubro de 1995, revela que, quando saiu de Lisboa para ir viver em Lanzarote, levava 15 páginas escritas: cada vez que me aproximava do livro, era como se me empurrassem. Repelia-me.

Ainda segundo os cadernos de capa preta, em 6 de Dezembro de 1994, exactamente três anos e três meses passados sobre o almoço na Varina da Madragoa, anotava que, decorrido todo este tempo, nem cinquenta páginas tinha ainda conseguido escrever.

E na citada entrevista ao JL, interrogava-se:

Não sei como é que as pessoas que me costumam ler, habituadas a um certo lirismo e beleza poética de outros livros, vão aguentar a dureza deste romance.

Ao longo dos três primeiros volumes dos Cadernos de Lanzarote, Saramago vai dando conta de como corre a escrita do Ensaio:


 20 de Abril de 1993

Esta manhã, quando acordei, veio-me à ideia o Ensaio Sobre a Cegueira, e durante uns minutos tudo me pareceu claro – excepto que do tema possa vir a sair alguma vez um romance, no sentido mais ou menos consensual da palavra e do objecto. Por exemplo: como meter no relato personagens que durem o dilatadíssimo lapso de tempo narrativo de que vou necessitar? Quantos anos serão precisos para que se encontram substituídas, por outras, todas as pessoas vivas num momento dado? Um século, digamos que um pouco mais, creio que será bastante. Mas neste meu Ensaio, todos os videntes terão de ser substituídos por cegos, e estes, todos, outra vez por videntes… As pessoas, todas elas, vão começar por nascer cegas, viverão e morrerão cegas, a seguir virão outras que serão sãs da vista e assim vão permanecer até à morte. Quanto tempo requer isto? Penso que poderia utilizar, adaptando-o a esta época, o modelo «clássico» do «conto filosófico», inserindo nele, para servir as diferentes situações, personagens temporárias, rapidamente substituíveis por outras no caso de não apresentarem consistência suficiente para uma duração maior na história que estiver a ser contada.

21 de Junho de 1993

Dificuldade resolvida. Não é preciso que as personagens do Ensaio Sobre a Cegueira tenham de ir nascendo cegas, uma após outra, até substituírem, por completo, as que têm visão: podem cegar em qualquer momento. Desta maneira fica encurtado o tempo narrativo.

2 de Agosto de 1993:

Escrevi as primeiras linhas do Ensaio Sobre a Cegueira.

Que teria feito às 15 páginas de que falara a Maria Leonor Nunes quando partiu para Lanzarote?

Modificou-as? Riscou-as?

15 de Agosto de 1993

Decidi que não haverá nomes próprios no Ensaio, ninguém se chamará António ou Maria, Laura ou Francisco, Joaquim ou Joaquina. Estou consciente da enorme dificuldade que será conduzir uma narração sem a habitual, e até certo ponto inevitável, muleta dos nomes, mas justamente o que não quero é ter de levar pela mão essas sombras a que chamamos personagens, inventar-lhes vidas e preparar-lhes destinos. Prefiro, desta vez, que o livro seja povoado por sombras de sombras, que o leitor não saiba nunca de quem se trata, que quando alguém lhe apareça na narrativa se pergunte se é a primeira vez que tal sucede, se o cego da página cem será ou não o mesmo da página cinquenta, enfim, que entre, de facto, no mundo dos outros, esses a quem não conhecemos, nós todos.

30 de Agosto de 1993

Terminado o primeiro capítulo do Ensaio. Um mês para escrever quinze páginas… Mas Pilar, leitora emérita, diz que não me saí mal da empresa.

25 de Novembro de 1993

Em que ponto está o Ensaio Sobre a Cegueira? Parado, dormindo, à espera de que as circunstâncias ajudem. Mas as circunstâncias, mesmo quando parecem propícias, não perdem a sua volubilidade natural, precisam de uma mão firme e boa conselheira. Até ao fim do ano, não terei mais remédio que deixá-las à solta  mas logo a seguir tratarei de as prender curto.

17 de Dezembro de 1993

Voltei – timidamente – ao Ensaio. Modifiquei umas quantas coisas, e o capítulo ficou bastante melhor: a importância que pode ter usar uma palavra em vez de outra, aqui, além, um verbo mais certeiro, um adjectivo menos visível, parece nada e afinal é quase tudo.


24 de Julho de 1994

Uma coisa seria querer fazer um romance sem personagens, outra pensar que seria possível fazê-lo sem gente. E esse foi o meu grande equívoco quando imaginei o Ensaio Sobre a Cegueira. Tão grande ele foi que me custou meses de desesperante impotência: Levei demasiado tempo a perceber que os meus cegos podiam passar sem nome, mas não podiam viver sem humanidade. Resultado: uma boa porção de páginas para o lixo.

12 de Janeiro de 1995

José Manuel Mendes pergunta-me num fim de carta: «Como vai o Ensaio?» Vou responder-lhe com uma palavra simples: «Avança.» Provavelmente, ele pensará: «Enfim… já não era sem tempo.»

18 de Junho de 1995

Voltei ao Ensaio. Com a disposição firme de levá-lo desta vez ao fim, custe o que custar. Durante todo o tempo que andei por fora, amigos e conhecidos não pararam de perguntar pelos meus cegos. Chegou a altura de eles responderem por si mesmos.

9 de Agosto de 1995

Terminei ontem o Ensaio Sobre a Cegueira quase quatro anos após o surgimento da ideia.
(…)
E lutei, lutei muito. Só eu sei quanto, contra as dúvidas, as perplexidades, os equívocos que a toda a hora me iam atravessando na história e me paralisavam. Como se isto não fosse bastante, desesperava-me o próprio horror do que ia narrando. Enfim, acabou, já não terei de sofrer mais.

O Ensaio Sobre a Cegueira é um livro notável, mas difícil.
Doloroso mesmo, como realça o próprio autor quando fala das dificuldades que  enfrentou para o escrever.
Quando terminei a leitura de Ensaio Sobre a Cegueira, senti-me perdido.

Ainda não me tinha acontecido com nenhum outro livro do autor.

Interiorizei, de imediato,que tinha de voltar a lê-lo.

Uma segunda e terceira leituras, espaçadas no tempo, conseguiram que, finalmente, absorvesse toda aquela delirante e louca beleza.

A publicação do livro pela Leya/RTP vai, agora, possibilitar a quarta leitura.

Nessa noite o cego sonhou que estava cego.


A um jornalista do Público, que lhe perguntou como gostaria de ser recordado, Saramago respondeu:

“Gostaria de ser recordado como o escritor que criou a personagem do cão das lágrimas, no “Ensaio sobre a cegueira”. É um dos momentos mais belos que fiz até hoje como escritor. Se no futuro puder ser recordado como “aquele tipo que fez aquela coisa do cão que bebeu as lágrimas da mulher” ficarei contente”.

Tal como se pode ler na pág. 226 da 1ª edição, Outubro de 1995 do Ensaio Sobre a Cegueira.

A mulher do médico vai lendo os letreiros das ruas, lembra-se de uns, de outros não e chega um momento em que compreende que se desorientou e perdeu. Não há dúvida, está perdida. Deu uma volta, deu outra, já não reconhece nem as ruas nem os nomes delas, então, desesperada, deixou-se cair no chão sujíssimo, empapado de lama negra, e, vazia de forças, de todas as forças, desatou a chorar. Os cães rodearam-na, farejam os sacos, mas sem convicção, como se já lhes tivesse passado a hora de comer, um deles lambe-lhe a cara, talvez desde pequeno tenha sido habituado a enxugar prantos. A mulher toca-lhe na cabeça, passa-lhe a mão pelo lombo encharcado, e o resto das lágrimas chora-as abraçada a ele. Quando enfim levantou os olhos, mil vezes louvado seja o deus das encruzilhadas, viu que tinha diante de si um grande mapa, desses que os departamentos municipais de turismo espalham no centro das cidades, sobretudo para uso e tranquilidade dos visitantes, que tanto querem poder dizer aonde foram como precisam saber onde estão. Agora, estando toda a gente cega, parece fácil dar por mal empregado o dinheiro que se gastou, afinal há é que ter paciência, dar tempo ao tempo, já devíamos ter aprendido, e de uma vez para sempre, que o destino tem de fazer muitos rodeios para chegar a qualquer parte, só ele sabe o que lhe terá custado trazer aqui este mapa para dizer a esta mulher onde está. Não estava tão longe quanto cria, apenas se tinha desviado noutra direcção, só terás de seguir por esta rua até uma praça, aí contas duas ruas para a esquerda, depois viras na primeira à direita, é essa a que procuras, do número não te esqueceste. Os cães foram ficando para trás, alguma coisa os distraiu pelo caminho, ou então muito habituados ao bairro e não querem deixá-lo, só o cão que tinha bebido as lágrimas acompanhou quem as chorara, provavelmente este encontro da mulher e do mapa, tão bem preparado pelo destino, incluía também um cão.

Legenda: Capa da tradução holandesa de Ensaio Sobre a Cegueira, retirada do site da Fundação José Saramago, e fotogramas do filme Ensaio Sobre a Cegueira de Fernando Meirelles.

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