Com Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago,
a nova Colecção dos Livros RTP não poderia começar melhor.
A edição tem
prefácio de Zeferino Coelho, seu editor desde 1979, ano da publicação da peça
de teatro A Noite.
Um texto
curto, simples e conciso, mas que denota o amor pelo homem e pelo escritor que
ninguém queria editar.
Mas ele
acreditou no homem e no escritor, no amigo e no camarada.
Recorde-se
que a Bertrand recusou a publicação de Levantado do Chão e, mesmo Nelson deMatos, a atravessar momentos difíceis na Moraes, também amigo e camarada de
José Saramago, não conseguiu dar a volta ao texto.
Louve-se
Zeferino Coelho pelo risco e a ousadia.
José Saramago era, do ponto de vista de um
editor, por vários motivos, o escritor ideal. Por exemplo: aí por janeiro ou
fevereiro telefonava-me e dizia: “Este ano tens livro novo. Conta com ele lá
para o final de Julho. Podes programar as coisas para ele sair em outubro,”
Nunca falhou. Por vezes adiantava-se ou atrasava-se uma ou duas semanas no
máximo.
O Ensaio Sobre a Cegueira, na opinião de
Maria Alzira Seixo, é um livro
impressionante, de leitura muito incómoda, mas que nos mantém presos até à
última página, no dizer de Baptista-Bastos, uma verdadeira descida aos infernos e, Saramago, ao terminar o
romance, escreveu nos seus Cadernos de Lanzarote:
…pensá-lo, fazê-lo, sofrê-lo, já foi, como
tinha de ser, obra de transpiração.
Tal como
consta dos seus cadernos de capa preta, a ideia do livro ocorreu a Saramago, no
dia 6 de Setembro de 1991, enquanto esperava que lhe servissem o almoço no
restaurante Varina da Madragoa:
A pergunta
que faz a si mesmo: E se nós fôssemos
todos cegos?
De imediato
saiu-lhe a resposta: Mas nós estamos
todos cegos.
Mais tarde escreverá:
Estamos cada vez mais cegos porque cada vez
menos queremos ver.
Numa
entrevista a Maria Leonor Nunes, publicada no JL de 25 de Outubro de 1995, revela que, quando saiu de Lisboa para
ir viver em Lanzarote, levava 15 páginas escritas: cada vez que me aproximava do livro, era como se me empurrassem.
Repelia-me.
Ainda
segundo os cadernos de capa preta, em 6 de Dezembro de 1994, exactamente três
anos e três meses passados sobre o almoço na Varina da Madragoa, anotava que, decorrido todo este tempo, nem cinquenta
páginas tinha ainda conseguido escrever.
E na citada
entrevista ao JL, interrogava-se:
Não sei como é que as pessoas que me costumam
ler, habituadas a um certo lirismo e beleza poética de outros livros, vão
aguentar a dureza deste romance.
Ao longo dos
três primeiros volumes dos Cadernos de
Lanzarote, Saramago vai dando conta de como corre a escrita do Ensaio:
20 de Abril
de 1993
Esta manhã, quando acordei, veio-me à ideia
o Ensaio Sobre a Cegueira, e durante
uns minutos tudo me pareceu claro – excepto que do tema possa vir a sair alguma
vez um romance, no sentido mais ou menos consensual da palavra e do objecto.
Por exemplo: como meter no relato personagens que durem o dilatadíssimo lapso
de tempo narrativo de que vou necessitar? Quantos anos serão precisos para que
se encontram substituídas, por outras, todas as pessoas vivas num momento dado?
Um século, digamos que um pouco mais, creio que será bastante. Mas neste meu Ensaio,
todos os videntes terão de ser substituídos por cegos, e estes, todos, outra
vez por videntes… As pessoas, todas elas, vão começar por nascer cegas, viverão
e morrerão cegas, a seguir virão outras que serão sãs da vista e assim vão
permanecer até à morte. Quanto tempo requer isto? Penso que poderia utilizar,
adaptando-o a esta época, o modelo «clássico» do «conto filosófico», inserindo
nele, para servir as diferentes situações, personagens temporárias, rapidamente
substituíveis por outras no caso de não apresentarem consistência suficiente
para uma duração maior na história que estiver a ser contada.
21 de Junho
de 1993
Dificuldade
resolvida. Não é preciso que as personagens do Ensaio Sobre a Cegueira tenham de ir nascendo cegas, uma após outra,
até substituírem, por completo, as que têm visão: podem cegar em qualquer
momento. Desta maneira fica encurtado o tempo narrativo.
2 de Agosto
de 1993:
Escrevi as primeiras linhas do Ensaio
Sobre a Cegueira.
Que teria
feito às 15 páginas de que falara a Maria Leonor Nunes quando partiu para
Lanzarote?
Modificou-as?
Riscou-as?
15 de Agosto
de 1993
Decidi que não haverá nomes próprios no
Ensaio, ninguém se chamará António ou Maria, Laura ou Francisco, Joaquim ou
Joaquina. Estou consciente da enorme dificuldade que será conduzir uma narração
sem a habitual, e até certo ponto inevitável, muleta dos nomes, mas justamente o
que não quero é ter de levar pela mão essas sombras a que chamamos personagens,
inventar-lhes vidas e preparar-lhes destinos. Prefiro, desta vez, que o livro
seja povoado por sombras de sombras, que o leitor não saiba nunca de quem se
trata, que quando alguém lhe apareça na narrativa se pergunte se é a primeira
vez que tal sucede, se o cego da página cem será ou não o mesmo da página
cinquenta, enfim, que entre, de facto, no mundo dos outros, esses a quem não
conhecemos, nós todos.
30 de Agosto
de 1993
Terminado o
primeiro capítulo do Ensaio. Um mês
para escrever quinze páginas… Mas Pilar, leitora emérita, diz que não me saí
mal da empresa.
25 de
Novembro de 1993
Em que ponto
está o Ensaio Sobre a Cegueira?
Parado, dormindo, à espera de que as circunstâncias ajudem. Mas as
circunstâncias, mesmo quando parecem propícias, não perdem a sua volubilidade
natural, precisam de uma mão firme e boa conselheira. Até ao fim do ano, não
terei mais remédio que deixá-las à solta
mas logo a seguir tratarei de as prender curto.
17 de
Dezembro de 1993
Voltei –
timidamente – ao Ensaio. Modifiquei
umas quantas coisas, e o capítulo ficou bastante melhor: a importância que pode
ter usar uma palavra em vez de outra, aqui, além, um verbo mais certeiro, um
adjectivo menos visível, parece nada e afinal é quase tudo.
24 de Julho
de 1994
Uma coisa
seria querer fazer um romance sem personagens, outra pensar que seria possível
fazê-lo sem gente. E esse foi o meu grande equívoco quando imaginei o Ensaio Sobre a Cegueira. Tão grande ele
foi que me custou meses de desesperante impotência: Levei demasiado tempo a
perceber que os meus cegos podiam passar sem nome, mas não podiam viver sem
humanidade. Resultado: uma boa porção de páginas para o lixo.
12 de
Janeiro de 1995
José Manuel
Mendes pergunta-me num fim de carta: «Como
vai o Ensaio?» Vou responder-lhe com uma palavra simples: «Avança.» Provavelmente, ele pensará:
«Enfim… já não era sem tempo.»
18 de Junho
de 1995
Voltei ao Ensaio. Com a disposição firme de
levá-lo desta vez ao fim, custe o que custar. Durante todo o tempo que andei
por fora, amigos e conhecidos não pararam de perguntar pelos meus cegos. Chegou
a altura de eles responderem por si mesmos.
9 de Agosto
de 1995
Terminei ontem o Ensaio Sobre a Cegueira quase quatro anos após o surgimento da
ideia.
(…)
E lutei, lutei muito. Só eu sei quanto,
contra as dúvidas, as perplexidades, os equívocos que a toda a hora me iam
atravessando na história e me paralisavam. Como se isto não fosse bastante,
desesperava-me o próprio horror do que ia narrando. Enfim, acabou, já não terei
de sofrer mais.
O Ensaio Sobre a Cegueira é um livro
notável, mas difícil.
Doloroso
mesmo, como realça o próprio autor quando fala das dificuldades que enfrentou para o escrever.
Quando terminei
a leitura de Ensaio Sobre a Cegueira,
senti-me perdido.
Ainda não me
tinha acontecido com nenhum outro livro do autor.
Interiorizei,
de imediato,que tinha de voltar a lê-lo.
Uma segunda
e terceira leituras, espaçadas no tempo, conseguiram que, finalmente, absorvesse
toda aquela delirante e louca beleza.
A publicação
do livro pela Leya/RTP vai, agora, possibilitar a quarta leitura.
Nessa noite o cego sonhou que estava cego.
A um
jornalista do Público, que lhe
perguntou como gostaria de ser recordado, Saramago respondeu:
“Gostaria de ser recordado como o escritor
que criou a personagem do cão das lágrimas, no “Ensaio sobre a cegueira”. É um
dos momentos mais belos que fiz até hoje como escritor. Se no futuro puder ser
recordado como “aquele tipo que fez aquela coisa do cão que bebeu as lágrimas
da mulher” ficarei contente”.
Tal como se pode ler na pág. 226 da 1ª edição, Outubro de 1995 do Ensaio Sobre a Cegueira.
A mulher do médico vai lendo os letreiros das ruas, lembra-se de uns, de outros não e chega um momento em que compreende que se desorientou e perdeu. Não há dúvida, está perdida. Deu uma volta, deu outra, já não reconhece nem as ruas nem os nomes delas, então, desesperada, deixou-se cair no chão sujíssimo, empapado de lama negra, e, vazia de forças, de todas as forças, desatou a chorar. Os cães rodearam-na, farejam os sacos, mas sem convicção, como se já lhes tivesse passado a hora de comer, um deles lambe-lhe a cara, talvez desde pequeno tenha sido habituado a enxugar prantos. A mulher toca-lhe na cabeça, passa-lhe a mão pelo lombo encharcado, e o resto das lágrimas chora-as abraçada a ele. Quando enfim levantou os olhos, mil vezes louvado seja o deus das encruzilhadas, viu que tinha diante de si um grande mapa, desses que os departamentos municipais de turismo espalham no centro das cidades, sobretudo para uso e tranquilidade dos visitantes, que tanto querem poder dizer aonde foram como precisam saber onde estão. Agora, estando toda a gente cega, parece fácil dar por mal empregado o dinheiro que se gastou, afinal há é que ter paciência, dar tempo ao tempo, já devíamos ter aprendido, e de uma vez para sempre, que o destino tem de fazer muitos rodeios para chegar a qualquer parte, só ele sabe o que lhe terá custado trazer aqui este mapa para dizer a esta mulher onde está. Não estava tão longe quanto cria, apenas se tinha desviado noutra direcção, só terás de seguir por esta rua até uma praça, aí contas duas ruas para a esquerda, depois viras na primeira à direita, é essa a que procuras, do número não te esqueceste. Os cães foram ficando para trás, alguma coisa os distraiu pelo caminho, ou então muito habituados ao bairro e não querem deixá-lo, só o cão que tinha bebido as lágrimas acompanhou quem as chorara, provavelmente este encontro da mulher e do mapa, tão bem preparado pelo destino, incluía também um cão.
Legenda: Capa da tradução holandesa de Ensaio Sobre a Cegueira, retirada do site da Fundação José Saramago, e fotogramas do filme Ensaio Sobre a Cegueira de Fernando Meirelles.
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