domingo, 10 de maio de 2020

LOUCA, DE CERTEZA


“I never heard from Shelagh again. I tried to call her around
that time, but the number was cutt off. She just vanished.

(Sandy Roberton, Produtora B&C Records, Outubro 2004)


Em Agosto de 1970, por altura do lançamento do seu primeiro álbum, a “Melody Maker” questionava-se se não estaríamos na presença de uma nova Sandy Denny.

Era muito bela e tinha uma imagem pessoal semelhante. A mesma simplicidade de processos, a mesma voz de Anjo e aquele mesmo peculiar jeito de nos pegar pela mão e nos levar de mansinho pelos bosques do silêncio.

Em 1971, no auge da fama depois do aparição de um segundo álbum e  já com um terceiro em preparação, desapareceu.

Algum tempo se passou sem que ninguém soubesse nada dela,  mas, depois,  começaram a achar estranho esse  silêncio e essa ausência

Bateram-lhe à porta,  e nada.

Os vizinhos não a viam há já muito tempo e também não sabiam nada dela.

Tentaram encontrá-la com insistência, até para lhe pagarem os “royalties” resultantes da venda dos seus discos, mas sem sucesso...

Chegaram a pedir a ajuda da Polícia.

Mas nada…

Alguns começaram a dizer  que teria  desaparecido para  sempre. … 

Que se tinha devotado a Deus e estaria enclausurada num convento…

Que teria emigrado para o Canadá, onde escrevia livros para crianças...

Outros diziam que tinha mudado de nome e agora andaria  por aí incógnita num país longínquo, tal como o Jack Nicholson  no  filme do Antonioni.

Outros ainda, mais próximos dela, que se cansara, de vez,  da mentira, da falsidade, da inveja, da intriga, das falsas amizades do mundo do “showbiz”, mesmo sendo este  um meio muito restrito como é o da Folk .

Que se estava nas tintas para o sucesso, para a fama, para o dinheiro e para os bens materiais,  e que  o que mais lhe interessava era sentir-se bem consigo própria.

Mas mandar assim tudo às urtigas quando se começa a ter o mundo da Folk a nossos pés…? 

Estará louca, de certeza,  pensaram eles.…

PS:

Escrevi este curtíssimo texto há cerca de 12/13 anos, quando comprei este CD “Let no Man Steal Your Thyme”, que aqui vos mostro, e para tudo quanto afirmei  baseei-me nas “notas” do opúsculo que acompanha o disco.

Na altura não o dei a conhecer a ninguém porque entendi que não tinha qualquer interesse, e só o faço agora, com este complemento, porque acho a história, no mínimo, curiosa.

Poderia, de facto, ter sido uma bonita história de desprendimento e de devoção a um Ideal de vida se mais de trinta anos depois Shelagh McDonald não tivesse deitado tudo a perder ao voltar de entre os mortos, como a Madeleine de Vertigo…

Mas não nos antecipemos à história e regressemos ao CD e ao contexto da sua publicação.

O CD reúne os dois LP’s gravados por Shelagh McDonald (“The Shelagh McDonald Album”, de 1970, e “Starzeger”, de 1971), a que se juntam algumas versões alternativas, bem como outros “demos”, nomeadamente daquele que deveria ter sido o seu terceiro álbum.


E é bom que se diga, desde já, que estes dois discos estiveram longe de ser gravações artesanais relativamente “underground”, como tantas vezes sucedia na Música Folk daqueles tempos. Longe disso… Shelagh McDonald tem a acompanhá-la a “nata” dos músicos Folk da sua época, gente como Richard Thompson e Dave Mattacks, dos Faiport Convention, Danny Thompson dos Pentangle ou Keith Tippet, dos King Crimson,  o que demonstra bem a confiança que a sua Editora depositava no seu sucesso.

Em 2005, quando estes discos foram reeditados mais de trinta anos após a sua publicação original, atravessa-se um novo “revival “ no interesse pela Música Folk, deste e do outro lado do Atlântico.

Músicos como Devendra Banhart, Andy Cabic (do grupo Vetiver, acerca o qual já escrevi), Conor Oberst (dos “ Six Organs of Admittance”, “ Bright Eyes”, ...) ou Neil Halstead (“Slowdive”, “Mojave 3”, …) sempre reconheceram ter uma dívida de gratidão para com a Folk Britânica dos anos 60/70, sobretudo aquela corrente a que se convencionou chamar “Psychedelic Folk”.  E sempre procuraram homenagear esses intérpretes, fazendo “covers” das suas canções, chamando-os a participar nos seus próprios discos ou simplesmente enaltecendo a sua memória nos escritos que faziam e nas entrevistas que concediam à imprensa da especialidade.

Isto gerou uma onda de interesse nas gerações mais novas, e muitos músicos que  já tinham caído num relativo esquecimento  viram os seus velhos discos reeditados em CD e voltaram a ser ouvidos com prazer e admiração.

É o caso de Bridget St. John,  Linda Perhacs ou de Vashti Bunyan, para só vos falar de vozes femininas. Algumas, como Bunyan, gravaram novos originais e tiveram como que direito a uma segunda carreira, com digressões por esse Mundo fora (vi-a “ao vivo” no Maria Matos, há cinco anos atrás).

A reedição dos discos de Shelagh McDonald insere-se, portanto, nessa onda revivalista que marcou essa época, e suscitou muito interesse, nomeadamente na Escócia, seu país de origem.

Charles Donovan, no jornal  “The Independent”, terá sido o primeiro a falar dela, da sua música e do seu súbito “desaparecimento”, num artigo apropriadamente intitulado “Mystery Woman”.

Outros artigos se seguiram, nomeadamente no “The Scotish Dayly Mail”.

E foi precisamente esse artigo que Shelagh McDonald um dia leu e, surpreendentemente, resolveu aparecer no jornal, sem aviso prévio, para contar a sua história.

Em 1972, com um terceiro disco já em fase de gravação, Shelagh McDonald, então com 24 anos e a atravessar uma relação amorosa problemática, sentia-se desnorteada e insegura  e o recurso às drogas era a solução mais à mão por esses tempos.

Numa noite de festa, em Londres, uma dose cavalar de LSD deixou-a alucinada e sem controlo sobre si própria, naquilo a que na gíria se chamava uma “bad trip”. As noites seguiram-se umas atrás das outras e as alucinações  também, cada uma pior que a anterior… “Lost in a nightmare”, como mais tarde escreveria Charles Donovan.


Até que um dia caiu em si e percebeu que necessitava da ajuda de quem lhe quisesse bem.

Regressou a Glasgow à casa paterna, e com a ajuda dos pais conseguiu ultrapassar a os efeitos da droga. 

Mas havia um problema que parecia irreversível: a sua bela voz de anjo estava arruinada.

Os pais, que nunca tinham visto com muito bons olhos a sua   carreira de “folksinger”, convenceram-na a abdicar da Música.

E ela assim fez. Empregou-se numa loja e viveu uma vida pacata.

Mas tempos depois conheceu um negociante de livros, Gordon Farguhar, com quem casou, e os dois desapareceram da circulação e passaram a viver em perfeita vagabundagem, vivendo da caridade alheia e saltando de lugar para lugar e de barraca para barraca, quase sempre em comunhão com a natureza em ambientes rurais e durante muitos anos com uma tenda as costas, ao verdadeiro estilo “hippie”.

Cortaram todas as ligações que tinham com o passado, incluindo os laços familiares e de amizade, e Shelagh nem ao funeral dos pais compareceu.

Mais de 30 anos assim se passaram até que em 2005 deparou com o tal artigo do jornal que falava de si como uma dama misteriosa.

Confessou ter-se sentido comovida e agradecida por, tantos anos depois, os seus discos terem sido reeditados e a nova geração ainda se interessar por ela e pela sua música.

Mas fez mais do que simplesmente comover-se…

Foi reclamar os mais de 30 anos de “royalties” em atraso, juntou-os  aos do novo CD, abandonou a vida de vagabundagem e em 2008 comprou um apartamentozinho na cidade, para onde se mudou com o marido.

A sua voz não melhorara de todo, mas alguma coisa deve ter melhorado porque há memória no YouTube de algumas atuações em bares nos anos que se seguiram, e até há quem garanta que gravou um novo CD chamado “Parnassos Revisited”, que não teve distribuição comercial mas foi vendido de porta em porta…

Em 2012 dois acontecimentos importantes ocorreram na sua vida: o marido morreu e a sua voz melhorou substancialmente (desconheço se haverá alguma ligação psicológica entre um facto e outro…).

Antes de falecer, o marido havia-a incentivado a retomar o canto e Shelagh recorreu, então, aos serviços de um professor  para a ajudar a moldar de novo a sua voz e declarou-se pronta a retomar as lides musicais.

Em 16 de Janeiro de 2013, mais de 40 anos depois do último, apareceu de novo num concerto público, no “Green Note”, em Londres. Abriu com o seu grande sucesso “Let no Man  Your Thyme” e, segundo se disse, terá cantado muito material novo

Mais uma vez se falou em nova gravação de disco, com nome e tudo (“Timescapes”) e terá sido por essa altura que se associou a uma banda Folk chamada “Razorbills”, colaboração de que existe alguma memória no YouTube.

A partir daí e passados que foram 7 anos….., quase mais nada. O último registo “ao vivo”que existe no Youtube é de 2014 e não há, em lado nenhum, sinais do tão badalado terceiro disco.

Que Shelagh McDonald recuperou o seu lugar entre os grandes da Folk Britânica, isso não resta qualquer dúvida. A comprová-lo está a sua inclusão nesta muito completa coletânea de 2008 que vos mostro, “The All New Electric Muse – The Story of Folk into Rock”, na qual surge ao lado de todos os “monstros sagrados” da sua época.


“A new Sandy Denny”…?

Aí já me permito duvidar…

A sua voz é belíssima, de facto, mas irregular. Tanto me faz lembrar Sandy  como, por vezes, Joni Mitchell,  Judy Collins e, aqui e  além, até um Nick Drake de saias... Verdadeira “irmã gémea” da “Queen” só a sinto na belíssima versão 2 de “Dowie Dens of Yarrow”, que  parece ter saído direitinha do primeiro disco dos “Fotheringay”.

O que terá acontecido a esta Senhora…? 
  
Terá desaparecido, de novo…?

Terá morrido…?

Mulher muito misteriosa esta, de facto…

Mas, por mim, mais valeria que tivesse ficado quieta.

Conviveria muito melhor com a imagem de Shelagh, o Anjo desaparecido, do que com a de Mrs. McDonald, a vagabunda arrependida... 

Texto de Luís Miguel Mira

1 comentário:

Seve disse...

Que bela história para um grande livro.