Eu não sou
nem quero passar por ser um grande conhecedor de “Soul Music”.
Sei o mais
elementar, isto é, que tudo o que na América é “Soul” tem a ver com a Cultura
afro-americana, com os estados de Alma de todo um Povo, as suas lutas para se
impor, as suas alegrias, os seus sofrimentos…
E que, como
quase tudo o que é Música na América, proveio do “Gospel” e do “Blues”,
neste último caso talvez de um “Blues” mais ritmado como é o de Chicago, do que
daquele mais despojado do Delta do Mississippi.
E, é claro,
bastava-me na altura ouvir uns acordes instrumentais e um tom de voz para
perceber de imediato se era “Soul”, ou qualquer outra coisa...
Agora para ir
mais longe na genealogia e na tipologia da “Soul” tenho de recorrer a outras
fontes...
E perceber
que a correta definição da genealogia da “Soul Music”, tal como sucede com
quase todos os géneros musicais na América, é complexa e não consensual.
Começa por
não ser possível definir um “tipo ideal” de “Soul Music” “à la Max Weber”, e
por isso considera-se que existem diferentes tipos de “Soul Music”, cada um
deles associado a uma determinada região, a uma determinada cidade, a uma
determinada editora musical e a um determinado tipo de interpretação,
nomeadamente no que respeita à articulação voz/suporte instrumental. Mas não
valerá a pena entrar muito por aí...
Quanto à
paternidade, uns garantem que é possível encontrar os primeiros genes do que
seria a “Soul Music” em muitas das gravações de Ray Charles nos anos 50, para a
Atlantis Records, mas sustentam que foram as primeiras gravações de
Solomon Burke em 1961, para essa mesma editora, que marcaram claramente o
início de um novo género musical.
Outros
contestam, afirmando que o estilo de Solomon Burke desses primeiros tempos da
Atlantis pouco se distingue do dos vários “crooners” que então pululavam na
música americana e que os primeiros sinais daquilo que viria a ser a verdadeira
“Soul” moderna que tanto sucesso teve durante os anos 60 terão de ser
encontrados no “Memphis Soul” e nas primeiras gravações de Otis Redding e,
posteriormente, de Wilson Picket para a “Stax Records”, de Memphis, a partir de
1962.
Outros ainda
dizem que o espírito “Soul” também pode ser encontrado em muitas das gravações
da Motown, criada em Detroit em 1959, embora com um estilo mais Pop e
ritmado.
Numa coisa
estão todos de acordo: essas três editoras, Atlantis, Stax e Motown, com as
suas diversas subsidiárias, foram, no seu conjunto, responsáveis pelo que de
mais importante se passou na história da “Soul Music” durante a segunda metade
do século passado, e sobretudo a partir do início dos anos 60.
Como
vos referi no último texto, vim parar à “Soul” quando tinha 13/14 anos de
idade, ou seja, na transição para a segunda metade dos anos 60, quando este
género beneficiava de uma enorme projeção à escala planetária.
Mas eu não
era um grande conhecedor e, muito menos, um incondicional da música “Soul”.
Ouvia,
sobretudo, Otis Redding, Carla Thomas, Aretha Franklin e Sam & Dave.
Suportava
muito bem toda aquela panóplia instrumental porque de facto era, na maioria das
vezes, muito boa.
Mas quando
aquela gente se punha a berrar demasiado, o que sucedia com muita
frequência, a minha tolerância abanava.
Até numa
canção tão singela, como era “I Say a Little Prayer”, que terei conhecido
primeiro através de Aretha Franklin e não na versão inicial de Dionne Warwick,
eu reagia mal quando se chegava à parte do “Forever, forever, you’ll stay in
my heart”… Demasiado estridente para mim...
O que eu
gostava, verdadeiramente, era do começo, com o suave instrumental e as vozes de
fundo
“The moment
I wake up
Before I put on my makeup
I say a little prayer for you
Before I put on my makeup
I say a little prayer for you
While combing my hair, now
And wondering what dress to wear, now
I say a little prayer fo you”
Mas hoje
percebo que aquilo de que verdadeiramente mais gostava era das “baladas soul”
de Otis Redding, como “These Arms of Mine”, “I’ve Been Loving You too Long”,
“Pain in my Heart”, “You Send Me” e, é claro “The Dock of the Bay”. Coisas que
eu sentia que me puxavam ao sentimento, embora ainda não compreendesse muito
bem a totalidade das letras…
Gostava
de ouvir essas músicas sozinho, às escuras. Estendia-me ao comprido na cama e
ouvia-as vezes sem conta, umas atrás das outras. E só muito mais tarde
vim a saber que, precisamente devido a esse tipo de canções mais “lamechas”,
chamavam a Otis Redding “Mr. Pitiful”...
Mas então se
“Soul,” para mim, era Otis Redding, a interrogação do título não terá qualquer
razão de ser…
Quase todas
essas gravações de Otis, bem como as de Carla Thomas, Sam & Dave
e outros de quem mais gostava, foram feitas em Memphis, no “Stax
Records”, que dispunha, também, de uma brilhante banda residente que depois
ganhou fama e se autonomizou: os Booker T & the MG’s.
A “Stax
Records” teve uma vida atribulada.
Foi criada em
1957 por Jim Stewart e começou por se chamar “Satellite Records”, nome que
ainda hoje perdura no frontispício do edifício, como podem ver através das
fotografias que vos envio.
Inicialmente
localizada numa pequena garagem em Brunswick, nos arredores de Memphis, começou
por se dedicar à música country, a grande vocação de Jim Stewart,e só mais
tarde, por influência do Produtor Chips Moman, adjunto de Stewart, evoluiria
para o “Gospel”, o “Blues” e o “Rhythm and Blues”.
Em 1958 a
irmã de Stewart, Estelle Axton, associou-se ao projeto com um substancial
investimento, e a editora deu um salto em frente com o lançamento da sua
primeira canção de “R&B”, “Fool in Love”, pelos Veltones, que foi um
relativo sucesso a nível nacional, distribuída pela Mercury Records.
Mas o
desenvolvimento da editora exigiria melhores condições logísticas, e em 1960
ela mudou-se para um antigo cinema em Memphis, no 926 East McLemore
Avenue, onde ainda hoje se encontra o Museu.
“Cause I Love
You”, interpretada por Rufus Thomas e pela sua filha Carla, marcou um ponto de
viragem na vida da editora, porque não só foi a primeira gravação efetuada nos
novos estúdios de Memphis, como também marcou o início de um acordo de
distribuição com a Atlantis Records, que iria perduraraté 1968. É por isso que
muitas das gravações efetuadas pela “Satellite” e pela “Stax” nesses anos
seriam distribuídas, a nível nacional e internacional, com o selo da Atlantis.
Pelo facto de
na California existir uma outra Editora chamada “Satellite”, a de Memphis foi
obrigada a mudar de nome em Setembro de 1961, para “Stax Records”, que resulta
da junção dos nomes do irmão Stewart e da irmã Axton.
Por essa
mesma altura, para ultrapassar os problemas colocados pelas
estações radiofónicas que, para não serem acusadas de favoritismo, se recusavam
a passar mais de dois discos em simultâneo de uma mesma editora, a “Stax” criou
uma subsidiária chamada “Volt Records”.
E foi
precisamente na “Volt” que começou a gravar, em 1962, Otis Redding.
A história é
muito curiosa e elucidativa de como o acaso tem, por vezes, uma enorme
importância na evolução das carreiras...
Embora já
estivesse na cena musical há uns tempos e até já tivesse gravado um disco numa
obscura editora de Los Angeles, Otis Redding acompanhava o músico Johnny
Jenkins, servindo, também, como seu motorista particular.
Por
iniciativa da Atlantis Records, que estudava a possibilidade de o integrar na
sua lista de intérpretes, Jenkins foi chamado a Memphis para um teste de
gravação na “Stax Records”, e chegou lá conduzido por Otis Redding, que
assistiu à sessão de gravação.
A sessão
acabaria por não se revelar muito produtiva e iria terminar mais cedo do que o
previsto, pelo que o representante da Atlantis pediu que dessem a Otis a
possibilidade de gravar, também ele, algumas músicas, para se ver se
interessavam à editora. Gravou duas, por si escritas: a primeira, “Hey, Hey
Baby”, que não suscitou grande admiração, e uma segunda, “This Arms of Mine”,
que deixou a audiência rendida e fez com que, de imediato, lhe fosse proposto
um contrato de gravação.
“These Arms
of Mine”, uma das canções dele de que mais gosto, foi lançada em “single” em
Outubro de 1962 pela subsidiária “Volt Records” e foi um sucesso nacional
imediato. Tal como “Hey, Hey Baby”, iria integrar o primeiro álbum de Otis,
“Pain in My Heart”, lançado com grande sucesso em 1964.
A partir daí
a história é conhecida. Otis Redding teve uma curta carreira recheada de
sucessos, vindo a falecer, para grande desgosto meu, a 10 de Dezembro de 1967,
com apenas 26 anos de idade, num acidente de aviação perto de Madison, no
Wisconsin, para onde se dirigia com a sua banda para um espetáculo. Estava no
auge da sua popularidade, após ter sido um enorme sucesso em Junho desse mesmo
ano, no “Monterey Pop Festival”
Mas durante
esses anos sessenta o sucesso da “Stax Records”, com outros nomes como Carla
Thomas, Isaac Hayes , Albert King, Sam & Dave, Staple Singers ou Booker
T. & The MG’s, não mais parou de crescer, até se tornar, como referi no
início, uma das “big three” da “Soul Music” nos Estados Unidos.
A morte de
Otis Redding viria, no entanto, a marcar uma nova fase da vida da
Editora.
No ano seguinte,
em 1968, o contrato de distribuição com a Atlantis foi cancelado mas a “Stax”,
com a entrada de um novo coproprietário, continuaria na ribalta, até começar a
ter problemas em meados dos anos 70,vindo a cessar a atividade, por
insolvência, em 1975.
Em 1978,
adquirida pela Fantasy Record, iria retomar a atividade, embora em novas
instalações.
A Fantasy,
por sua vez, viria a ser comprada pela Concorde Records em 2004, mas isso não
iria pôr em causa a atividade da “Stax” que iria continuar a explorar o seu
material antigo pós 1968 (o respeitante ao período 1959 – 1968 continua sob os
direitos da Atlantis…) e a produzir novo material de R&B e afins, por
intérpretes contemporâneos.
Com a venda
da “Stax” à Fantasy Records as instalações de Memphis foram deixadas ao
abandono e posteriormente compradas por uma Igreja da vizinhança, a “Church God
in Christ”, que por lá instalou, durante uns tempos, uma espécie de “Sopa dos
Pobres”.
Mas esse
projeto seria abandonado e as instalações caíram em rápida degradação, até
virem a ser adquiridas em 1998 por um grupo de filantropos locais apostados na
regeneração de toda essa zona de “south Memphis”, chamada “Soulsville”.
Iniciou-se,
então, a recuperação do edifício, tendo em vista a instalação de um museu que
honrasse a memória da “Soul Music”, em geral, e a da “Memphis Soul”, em
especial, e que pudesse ombrear com o idêntico Museu da Motown, em
Detroit, sendo estes os dois únicos museus que nos Estados Unidosse dedicam
exclusivamente à música “Soul”.
O “Stax
Museum of American Soul Music” seria aberto ao público emMaio de 2003 e nas
suas instalações existe uma réplica perfeita do antigo estúdio de gravação da
“Stax” e também uma igreja centenária transplantada do Delta do Mississippi
para ilustrar a ligação existente entre o “Gospel” que aí se cantava e a
“Soul Music”.
Para além de
outro tipo de material de exibição habitualmente existente em museus desta
natureza (filmes e fotografias da época, cartazes, fatos, instrumentos
musicais, etc), parece que também lá está o belíssimo Cadillac El Dorado
azul-pavão que foi usado por Isaac Hayes.
E se vos digo
“parece” é porque não meti os pés lá dentro e me limitei a ver todo o edifício
do exterior…
O que sucede
é que, numa das minhas frequentes manifestações de falta de senso em viagem,
decidi ir a pé desde o Centro de Memphis até às instalações da “Sun Records”.
Parecia
perto, mas é um perto à escala dos Estados Unidos…
Não perdi
tudo, porque tive oportunidade de ver um pouco mais de perto aquela Memphis
mais antiga e degradada que se vislumbra, por exemplo, no “Mystery Train”, do
Jim Jarmusch, mas ao regressar ao Centro e com o estúpido hábito dos
Museus na América fecharem, impreterivelmente, às 17h00, só me restavam duas
alternativas: ou ia visitar o “Stax Museum” ou o “Memphis Rock ‘n’ Soul Museum”
e, com muita pena, optei por este último por me parecer mais variado.
Mais não
deixei de ir cheirar o “Stax” à noite, depois do jantar...
É claro que
recordei a minha adolescência, ao imaginar como é que tanta coisa bonita dali
saíra direitinha ao meu quarto da Avª da República...
Quando me fui
embora, da noite de Memphis emanava uma estranha luminosidade, num misto de
azul, verde, vermelho e cor de laranja…
O hotel ainda
ficava longe e eu iria a ouvir, certamente, um CD no carro, como sempre o faço.
Mas não ouvia
nada…
Na minha
cabeça estava um miúdo de 13/14 anos de idade que pegava num EP de capa
acastanhada, punha a tocar a segunda do Lado A, escurecia o quarto e se
estendia ao comprido sobre a cama, a pensar não se sabe muito bem em quê…
“These arms
of mine,
They are
lonely
Lonely and
feeling blue
These arms
of mine,
They are
yearning
Yearning
from wanting you
And if you
would let them hold you
Oh, how
grateful I will be!
These arms
of mine,
They arte
burning
Burning
from wanting you
These arms
of mine,
They are
wanting
Wanting to
hold you
And if you
would let them hold you
Oh, how
grateful I will be!
Texto e
fotografias de Luís Miguel Mira
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