Para assinalar os 10
anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar
alguns textos que por aqui foram sendo publicados.
IRONIAS DO DESTINO
Guardo dos Suplementos Literários, principalmente os
publicados durante a ditadura, as mais gratas recordações.
Raro era o jornal que não tinha o seu suplemento, quase
todos publicados às quintas-feiras, uns mais bem trabalhados que outros, mas
qualquer um com o seu ponto de interesse.
Para mim o mais interessante, sempre foi o do Diário
de Lisboa, e recordo as críticas
literárias do Alexandre Pinheiro Torres, do Mário Sacramento, do Álvaro Salema,
do Eduardo Prado Coelho.
José Saramago, Vitor Silva Tavares, José Cardoso Pires,
foram alguns dos coordenadores do Suplemento do Diário de Lisboa.
Do muito do que por esses suplementos fui lendo, fiquei a
conhecer escritores, muitos dos quais nem sequer o nome ouvira.
É o caso deste artigo de Afonso Cautela, a propósito da
edição, pela Ulisseia, de uma Antologia do Raul de Carvalho e
publicado no Suplemento Literário do Jornal de Notícias de 3
de Março de 1966.
Depois de o ler, fiquei de imediato com a ideia de que
Raul de Carvalho era um escritor que teria de conhecer.
O dinheiro era curtíssimo e eu apontava os autores e os
livros num caderdinho, na expectativa de uma qualquer oportunidade para os
adquirir.
Numa tarde de sábado do ano Abril de 1972, num género de
carripana, que do lado direito de quem entrava no Parque Mayer, vendia livros e
revistas em 2ª mão, no meiode Corins
Tellado, Caprichos, Crónicas Femininas, Plateias e por aí
adiante, encontrei a Poesia de
Raul de Carvalho, editada em 1955 pela Portugália Editora.
Custou 5$00 que, naquele tempo, ao contrário do que se
possa pensar, não era um mero preço.
Precisamente o livro em que está inserido Vem
Serenidade, o tal poema que Bénard da Costa diz ser dos mais belos poemas da língua
portuguesa.
Sorte de leitor.
Vem, setrenidade,
e lembra-te de nós,
que te esperamos há séculos
sempre no mesmo sítio,
um sítio aonde a morte
tem todos os direitos.
As palavras de Afonso Cautela, que lera em 1966, tinham
toda a razão de ser.
Faço os recortes:
Assim se fazia a minha alegria de leitor, aquilo que
passa por ser cultura e é amor.
Aconteceu com Raul de Carvalho, com José Gomes Ferreira,
com José Saramago, tantos outros.
Descobri-los, ficar uma felicidade apaixonada a rondar
pelo corpo e nunca mais deixar de os ter a meu lado.
Dos vinte e cinco livros que Raul de Carvalho publicou 13
são Edição do Autor.
Para além dos custos de composição e impressão, Raul de
Carvalho tinha de andar, de livraria em livraria, a colocar os livros, que
ficavam em lugares pouco visíveis, a tralha é que tem de ficar bem à vista.
Tardiamente faziam contas com ele e nem todas chegavam a
fazê-las.
E Raul de Carvalho sempre viveu com extremas
dificuldades: económicas e de saúde.
Um quotidiano de silêncios, humilhações, dificuldades
inomináveis, uma descontrolada paixão pelos outros.
Mas com uma fidelidade a si próprio que tanto o
maravilhava, comovia e de que tanto se orgulhava.
Viveu numa permanente solidão, uma amarga e dolorosa
peregrinação, mas sempre soube de
que lado estava a verdade e a justiça.
Era um doente de risco, e sem ter com que pagar a alguém
que o acompanhasse na doença, chegou a viver num asilo de caridade em Odivelas.
Hoje, penso que não: que adoeci, que fui
Envelhecendo, que há poucos livros úteis,
Que, para sobreviver, temos de trabalhar…
E o trabalho sem amor mata.
Não penso já no amor, penso na morte.
Não na morte que a todos nos espera, a um canto
do mundo, a um momento, não na morte final
estou pensando agora.
Jorge de Sena colocou-o entre os 100 melhores poetas
do Século XX português.
E Baptista-Bastos dele escreveu:
Não o conheço de convívio, de fala, de gesto;
conheço-lhe a poesia, porventura a forma mais íntima de lhe escutar a voz, lhe
perscrutar as sombras, de entender os seus gritos hirtos, silenciosos,
arranhados e feridos. Raul de carvalho. Um dos maiores poetas portugueses
vivos, um homem marcado por suave tristeza, solidão proliferante em todos os
mansos movimentos e, num escrínio raro, os poemas que escreveu, falando de si
como se dos outros, de todos nós, falasse.
Em 1984, quis participar na IV Bienal de Vila Nova de
Cerveira com uma comunicação sobre a jovem poesia portuguesa, que não chegou a
apresentar.
Na madrugada de 12 para 13 de Agosto, o seu primeiro dia
de estadia na vila, foi encontrado caído no chão da casa onde dormia.
Levaram-no para o hospital de Viana de Castelo, mas dada
a gravidade do seu estado, encaminharam-no para o Hospital de S. João.
Com alta do hospital, foi repousar para casa do seu amigo
Albano Martins, no Porto. Foi aí que uma pneumonia, no dia 3 de Setembro,
colocou um ponto final no calvário dos dias atribulados que viveu.
No dia seguinte completaria 64 anos.
Ironias do destino, ou o que lhe quiserem chamar.
Texto publicado no dia 3 de Setembro de 2015.
2 comentários:
Que belo texto.
Tenho de conhecer Raul de Carvalho!
Um poeta maior, um homem de uma coragem, de uma ética que já (quase) não encontramos.
Conheci Raul de Carvalho através desta crítica no suplemento literário do «Jornal de Notícias»
Deixou 25 livros publicados, 13 são Edições do Autor.
Dos livros Edição do Autor, não tenho nenhum livro. Dos restantes apenas consegui encontrar cinco.
A Editorial Caminho publicou, em 1993, a Obra Completa de Raul de Carvalho. Tive esse livro, emprestei-o, passaram 25 anos, e nunca mais o vi. Vou tentando reencontrá-lo.
Existe também uma Antologia, publicada em 1975, organizada por Serafim Ferreira que nunca encontrei.
Também poderá encontrar em alfarrabistas um muito interessante ensaio, sobre o autor e obra, da autoria de Serafim Ferreira, e publicado em 1995 pela Editora Campo das Letras.
Somos um país que, sistematicamente, esquece os seus maiores.
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