Youkali É O País Dos Nossos Desejos
António Borges
Coelho
Capa: Rui A.
Pereira
Ilustração da
Capa: Rogério Ribeiro
Campo da
Comunicação, Lisboa, Outubro de 2014
Na auto-estrada, ao volante, Helena
sintoniza a «Canção da Terra» de Mahler. É noite. Os automóveis estendem o
colar das luzes. Altas janelas brilham suspensas e pontos amarelos irrompem dos
buracos negros da paisagem.
Não vale a pena mudar de faixa. Segue o
caudal. A fila da esquerda avança, e logo a fila do centro. Travão, ponto
morto, primeira. Pisca uma luz e o carro da direita atravessa-se na frente.
Quase o abalroava. Não percas a cabeça.
O carro do lado aumentou o volume da
telefonia. O Prestige está a fundar-se. Milhares de toneladas de crude espalham
a morte na Costa da Morte. as aves tentam abrir as asas coladas pela pasta
negra.
O colar luminoso brilha sem quebrar o
fio das contas. Pelo retrovisor Helena vê uma cabeça de sombra sobre o volante
do automóvel que a segue. Outras cabeças emergem, de um e de outro lao, presas
nos seus caixotes de lata. Nas consciências, uma fita contínua, muda ou sonora.
Desejo-te. Não perdes pela demora. Esta picada do lado esquerdo. A gasolina
está no vermelho.
Grito sincopado de uma ambulância. A luz
coalha. Mais um compasso de espera.
A mancha de crude atinge o Cabo
Finisterra. Enérgico, o ministro afirma que o barco não entra nas águas
nacionais. A vedeta da Marinha tem ordens, use todos os meios para travar a sua
marcha. A canção de Mahler emudece todos os outros sons.
Os homens
cansados voltam para casa
Para no sono
reaprenderem
A felicidade
esquecida e a juventude.
Silenciosos os
pássaros acocoram-se nos ramos.
O mundo
adormece.
Não adormece ainda, não adormece nunca. À
noite, o som «quase se apaga/ só o grito dos amantes/quando na crista da vaga».
- Onde está?
- Na auto-estrada.
- Tem cuidado.
Helena quase respirou o cheiro quente
das panelas. E imaginou o filho, a sala aquecida e iluminada, o corpo a pousar
liberto, às ondas, no sofá.
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