domingo, 24 de maio de 2020

OLHAR AS CAPAS



 A Torre da Barbela

Ruben A.
Capa: Rui Ligeiro
Editorial Presença, Lisboa, 1983

«Assim ficava a Torre, isolada nas suas aventuras, adormecida pelos tempos. Parecia um mundo trivial, sem mais nem menos, sem amores e ódios. O que estava, estava à vista. O resto ninguém via. Quase cruel aquele destino do caseiro e dos visitantes. Os filhos do caseiro andavam meio nu e, ao pé, um rafeiro, preso a uma cadeia de arame, ladrava de rabo espetado. Iam à feira a Ponte do Lima às duas vezes por mês, na charrette do Manhosos e, quanto ao mais, nada se passava de anormal. Os trabalhos agrícolas seguiam-se no ritmo milenário e saber se os Barbelas existiam ou não, era assunto que a ninguém parecia interessar. Coisas velhas, sem história ou riqueza. Para quê indagar do passado? Pedras e mais pedras e o Jardim dos Buxos, jardim de delícias onde os vivos do passado e não os fantasmas do presente viriam redimir os insultos dos profanos que visitavam a Torre. Tudo se transformaria com a noite dos séculos. Ali, hibernando ou não, a história teria de recomeçar. Mesmo que o rio ficasse silencioso, a excitação dos ventos caía no fim da tarde pelas cristas mais salientes do milho. O patético cobria as últimas pedras e nas faces pouco expressivas dos turistas a pergunta repetia-se: «Porque é que esta torre é triangular, quando todas as outras são em quadrado? Porque é que os Barbelas já não habitam o solar?»
E na resposta o mundo diluía-se sem perder tempo. Tudo ficava parado. Viria a noite e então o acordar surgia imponente, radiante nas suas andanças ao luar da História.
Ao fim da tarde, antes do crepúsculo cantar as suas loas e sem descortinar a realidade, apoderava-se da Barbela um sentido incógnito da existência. Forte como as nacionalidades e rija com a têmpera da lâmina do Xasco, o maior escanhoador da Ribeira Lima, a Torre preparava-se para o banho noctívago na sua vida de séculos. Existissem ou não estrelas, fosse breu ou luar a jorros pelos campos marginais, o mundo abria-se então dividindo o tempo. De um lado o espaço entre o crepúsculo da tarde e o da manhã; pela outra banda, o dia do caseiro e a visita habitual dos passantes em romagem ao monumento nacional. No entanto, nada de comum entre a noite da Barbela e o dia do calendário caseiro.

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