quinta-feira, 14 de maio de 2020

EMPANELADO


É estranho que, gostando eu hoje tanto de música, não tenha guardado da minha infância grandes memórias musicais.

Tal como acontece com quase todas as mães, a minha cantar-me-ia também, certamente, canções de embalar.

Mas eu não me recordo de nenhuma…

Lembro-me do doce cheirinho do “Vick Vaporub” sobre o peito…

Das inúmeras tentativas falhadas para me ensinar a rezar o “Padre Nosso”, na hora de adormecer…

Mas de canções de embalar, nada.

Na falta delas, lembro-me muito bem de uma cantilena meio poética que a minha Mãe me dizia ao deitar, e que reza assim:

“A morte é certa, dela ninguém se escapa.
Mas hei-de escapar eu….
Compro uma panela.
Escondo-me dentro dela muito bem.
A morte passa e diz: “hum!, aqui não está ninguém”…
Adeus meus senhores, passem todos muito bem…!”

Eu nem consigo perceber muito bem como é que uma história destas era contada a uma criança ao adormecer…

Mas eu não faria a mínima ideia do que era a Morte… Para mim, a história não devia passar de uma curiosa versão do “jogo das escondidas”.  E talvez que a minha Mãe acompanhasse a récita com divertidos gestos de expressão corporal, e fosse isso que me levasse a pedir-lhe a mesma cantiga todas as noites…

Mas, bem vistas as coisas, aquela curta história até será bastante adequada a estes tempos de pandemia que atravessamos, porque é mesmo assim que eu me sinto hoje, mais de sessenta anos depois. Bem fechadinho dentro de uma panela, à espera que a Morte passe ao largo e não queira nada comigo…!   

Por essa altura, na nossa casa do Mercado Geral de Gados, em Entrecampos (onde depois se instalou a Feira Popular), lembro-me da minha Mãe a tocar piano e a cantar o “Que Sera, Sera”, que nesses tempos devia fazer furor na Rádio pela voz da Doris Day.

Era um belíssimo piano “Steinway & Sons” que lhe coubera por herança e que era a menina dos seus olhos.

Gostava muito de ver a minha Mãe a cantar e a tocar, mas a verdade é que não me parecia impressionar muito com os bonitos sons que emanavam do piano. Para mim, o piano era motivo para brincadeiras, às escondidas… Dar o maior número possível de voltas no banco giratório… Carregar nos pedais… Bater teclas sem sentido…

Esse piano acabaria por ter um fim trágico.

Vendida a nossa quinta da Tala, nos arredores de Sintra, nos finais dos anos 50, o meu Pai teria prometido à minha Mãe que parte do dinheiro dessa venda seria investido na compra da moradia dos seus sonhos, onde certamente haveria muito espaço para um piano.

Mas quando tivemos de sair de Entrecampos os meus Pais alugaram casa ali perto, defronte do jardim do Campo Pequeno. Ainda me lembro de ter visto o piano na  sala de jantar dessa casa, mas não poderia ser uma solução definitiva… Era demasiado grande eocupava demasiado espaço.

O piano foi então levado para a Quinta de Moscavide, que não era nossa mas estava ao serviço da empresa de que o meu Pai era sócio, com o solene compromisso de que ficaria bem guardado e que voltaria a ter um espaço condigno logo que fosse comprada a tão badalada moradia.

Mas, como na canção da Doris Day, o que teria de acontecer aconteceria, e não estava escrito que a minha Querida Mãe teria direito à casinha dos seus sonhos.

O dinheiro da quinta da Tala foi investido em negócios, do Campo Pequeno saímos para um grande casarão na Avª da República e de moradias nunca mais se falou…

Um dia, de passagem por Moscavide, a minha Mãe deparou com o piano a um canto, coberto de pó, com galos e galinhas por cima, como num filme do Buñuel,  e com as magníficas teclas de marfim arrancadas.  

Ficou em estado de choque, a minha pobre Mãe!

O meu Pai nunca percebeu – ou não quis perceber… - que o piano, para ela, era muito mais do que um simples instrumento musical. Eram recordações dos tempos em que uma menina e moça prendada tocava piano e sabia francês … Eram sonhos de vestidos de cetim envolvidos em pedaços de Chopin…

E nunca mais me lembro de ter ouvido a minha Mãe cantar.

Deixava que lhe corresse uma lágrima pelo canto do olho sempre que ouvia o ”Oh Tempo, Volta Para Trás”, do António Mourão.  Aquela parte em que se pede ao tempo para nos voltar a dar tudo aquilo que perdemos deveria ser demais para o seu pobre coração... 

Quanto ao meu Pai, não me lembro de o ter ouvido alguma vez cantar.

Quando estava feliz, assobiava. Ou melhor, soprava, porque tinha tanto jeito para assobiar como eu...

Estou a vê-lo na Tala, em casa dos Trancosos, a jogar às cartas depois de uma boa jantarada, a refastelar-se para trás na cadeira, cigarrilha numa mão e conhaque na outra, a assobiar o “Petite Fleur”, do Sidney Bechet…

Talvez seja pouco para memória musical de um Pai, mas é o que se arranja… Em contrapartida, aprendi imenso sobre touradas e sobre os bons restaurantes de Lisboa e arredores…!

Da minha Querida prima Lena, assim uma espécie de irmã mais velha (ela gostava de dizer que eu é que era o seu filho mais velho…) que passava largas temporadas em nossa casa, o que me dá mais prazer recordar é Paço d’Arcos, numa noite de Verão no restaurante sobre a praia. Havia música no ar vinda de uma “Juke Box”, julgo eu, e um grupo de adultos que dançava em fila indiana à volta da esplanada uma música que só muitos anos mais tarde vim a saber ser do grande Dorival Caymmi.E a minha prima a chamar-me para me juntar aos crescidos e eu a ir assim com ela, para a Maracangalha e de chapéu de palha…

Ainda hoje um bonito luar sobre as águas, música, companhia de amigos e um bom petisco são, para mim, garantia de Felicidade absoluta. Se possível, tudo junto…!

Do meu Querido irmão José Carlos, a quem devo o gosto pelo Cinema, não me lembro de muita coisa, a não ser de o ver a estudar e a ouvir música no quarto, enquanto eu procurava adormecer. Era o mais velho dos irmãos e aquele que mais virado me parecia estar para a Música Clássica, coisa que não dá muito jeito para trautear… Mais tarde, quando já estava a fazer o Serviço Militar em Macau, vim a saber que era um grande fã dos Kraftwerk e de John McLaughlin...

O meu irmão Jorge, o único sobrevivente dos Irmãos, era aquele que, vistas agora as coisas à distância, me parecia ter o gosto musical mais apurado para a música desses tempos. Levava revistas de música, que eu folheava, e parece-me ter vindo dele a ideia de se começar a ouvir o “Em Órbita” lá em casa… Muito mais tarde, já em Serviço Militar em Angola, ajudei a namorada e futura mulher a comprar-lhe uns discos e fiz-lhe umas gravações. Fiquei contente quando, muitíssimos anos depois, ele me contou como era surreal ouvir o “Colour My World”, dos Chicago, à noite em pleno mato...

O Jorge gostava de Fats Domino, mas não me lembro de o ter visto cantarolar grande coisa quando era mais novo.  Com uma única exceção… Tinha alguns dotes vocais e lembro-me que imitava na perfeição a abertura instrumental do “I Feel Fine”, dos “Beatles”. Eu, de tanto o ouvir fazer aquilo, tornei-me também um especialista na matéria, mas só uns anos mais iria conseguir  identificar a música.

A minha Querida irmã Rosa Maria, a Zita, seria aquela a quem mais ficariam ligadas as minhas memórias musicais da adolescência. Lá em casa era ela a verdadeira fã dos Paul Anka, dos Pat Boone, dos Ricky Nelson e dos Elvis Presley.

À noite, já na Avº da República, ouvíamos a Rádio na salinha pequena, na companhia da nossa empregada, a Cesália. Era o “Quando o Telefone Toca”, do Senhor Matos Maia e do Senhor Joaquim Pedro,  onde todas as noites, invariavelmente,  ouvíamos aquilo a que as meninas então chamavam a “Melodia do Desespero”, que não era mais do que a “Unchained Melody”, dos “Righteous Brothers”… 

E havia, também, um outro programa para o qual se devia telefonar previamente para escolher uma canção, e a mais votada era passada na Rádio. Lembro-me de eu próprio ter telefonado a votar, certamente a pedido delas,  no “Sabor a Sal”, do António Calvário…!  

Por essa altura deveria andar pelos meus 11/12 anos, o que já era muito boa idade para ter juízo… Esse pé em falso poderia muito bem ter traçado o meu destino mas, felizmente, assim não aconteceu e coisa compôs-se...

Com exceção do Jorge, felizmente ainda vivo, todos estes meus Entes Queridos já desapareceram, levando-me agora a sentir na pele, dolorosamente, aquela afirmação  que há muitos anos atrás me lembro de ter ouvido num filme do Truffaut e à qual me limitara a achar, então, imensa graça...: chega uma altura da nossa Vida em que chegamos à conclusão de que conhecemos mais mortos do que vivos…

Mas falei do que a música me fazia recordar em todos eles, e pouco falei de mim.

Voltando ao início da conversa, é claro que teria gostado imenso de possuir uma “lullaby” a que hoje pudesse chamar minha..

À falta dela, a música mais antiga que me lembro de ter gostado foi  “A Mula da Cooperativa”, cantada pelo Max… Sempre que passava na Rádio iam a correr chamar-me e eu ria-me à gargalhada com o raio da mula a zurrar…

Depois,  ainda nos tempos do Mercado, houve aquela que terá sido a primeira música de língua inglesa a ficar-me no ouvido e que mais tarde vim a saber que era “A Wonderfull Time Up There”, do Pat Boone. 

Dois ou três anos mais tarde, talvez já no Campo Pequeno, uma outra que me ficou na memória foi“Wooden Heart”, cantada pelo Elvis Presley. Não sei se terei visto no cinema de Paço d’Arcos, com os meus irmãos, o filme “G.I. Joe” e terei achado graça à cena das “marionetes” com a miudagem à volta. onde a música aparecia, ou se por qualquer outro motivo, mas a verdade é que nunca mais me esqueci dessa música. 

A casa do Campo Pequeno é aquela que associo mais à música, o que não é de estranhar porque se eu tinha mais ou menos 6 anos quando para lá nos mudámos, os meus três irmãos teriam 13, 14 e 15 anos, idade mais do que suficiente para se dedicarem à música com outra atenção.

Lembro-me de por lá existir um pequeno gira-discos muito básico e de ver vários discos de 45 rotações empilhados, a maior parte dos quais deviam ter sido emprestados porque não estou a ver o meu velho Pai a dar-lhes muito dinheiro para a compra de discos.  Quase tudo música francesa e italiana, mas nada que me tivesse ficado muito no goto...  

Mas a verdade é esta: por essa altura eu não devia ligar muito à música e nem o perverso desejo tinha de ouvir os discos às escondidas, quando os meus irmãos não estavam em casa… Gostava mais de lhes pegar para ver as fotografias, do que propriamente de os ouvir,,,

Até que por volta dos meus 9/10 anos ocorreu um facto que iria mudar por completo a minha relação com a música.

No Cinema Roma passou “Mocidade em Férias”, com o Cliff Richard e os Shadows, que hoje sei ter sido realizado pelo inglês Peter Yates.

O filme era para “Maiores de 12 Anos” mas os meus irmão levaram-me quando nem sequer 10 anos tinha. Fizeram disso um grande mistério e quando estávamos no “foyer” disseram-me que tinha de ter muito cuidado porque a qualquer momento um fiscal poderia aparecer e pôr-me na rua… O que eu sofri naqueles breves minutos, em que todos os olhares me pareceram altamente ameaçadores…

Depois entrei na sala, as luzes apagaram-se e ….. continuei a sofrer…. Não é que o raio do filme era a preto e branco…! Quem é que vai ao Cinema para maiores de 12 anos ver um filme  a preto e branco…?? Para isso havia a televisão…! Mas num passe de magia o preto e branco  inicial transformou-se em cor e depois a história continuou pela estrada fora a bordo daquele enorme autocarro vermelho e com aquela maravilhosa música a surgir de tempos a tempos… O meu primeiro “road movie”, certamente, eu que tanto gosto de “road movies”…

Fiquei extasiado! 

Tornei-me no maior fã de Cliff Richard das Avenidas Novas…!

Embora poucas palavras soubesse em inglês, eu sabia de cor as músicas do filme de que mais gostara e cantava-as para dentro e para fora de mim quando as ouvia na Rádio : o “Summer Holliday”, o “Bachelar Boy”, o “Dancing Shoes”, o “The Next Time”….

A partir desse momento a minha relação de desapego pela Música nunca mais seria a mesma e ainda hoje, se me preparo para fazer uma longa viagem de carro para a qual tenho de levar uma pilha de CD’s, é certo e sabido que entre eles estará uma compilação de Cliff Richard e os Shadows desse início dos anos sessenta…

Depois, já na Avº da República, vem a fase de ouvir Rádio com a minha irmã de que já falei e mais tarde, sem saber muito bem como nem porquê, fui parar à “Soul Music”.

A minha irmã não quis prosseguir os estudos. Fez o curso da Escola Lusitânia Feminina e começou a trabalhar muito cedo, como Secretária.

Para além de me levar quase todos os Domingos ao Cinema Paris ver uma sessão dupla, a Rosa Maria também começou a comprar, com alguma frequência, os discos que eu lhe pedia, e que eram os últimos sucessos do Otis Reding, da Aretha Franklyn, de Sam & Dave e por aí fora. Devorava esses discos e também os sabia de cor esalteado.

Curiosamente, não me lembro de ter tido nenhuma “pancada” especial pelo Beatles, embora comprasse as pastilhas elásticas e colecionasse os bonecos...

Depois comecei a dar mais atenção ao “Em Orbita” que já se ouvia lá por casa, e a Música passou a ser outra.  Os meus amigos também estavam na mesma onda, como era o caso do João Pedro, que era filho único e que tinha uma enorme capacidade de chantagem sobre a Mãe, a qual lhe permitia ir sacando o dinheiro necessário para comprar  em Portugal, ou importar de Inglaterra, o que mais lhe interessava. E por essa altura já não estávamos na era dos 45 rotações, mas na dos LP’s, que iriam mudar, para sempre,  a nossa relação com a música…

Mas depois, e até hoje, os nossos destinos musicais iriam divergir: o João ficaria agarrado aos seus Stones e aos seus Isaac Hayes e eu iria partir, de mansinho, para as minhas “músicas de passarinhos”…

Uff! 

É verdade que vim de longe, de muito longe, mas só agora me dei conta do imenso que andei para aqui chegar…

A pretexto de vos contar que gostara muito de música Soul na adolescência,  e que isso tinha despertado o meu interesse em visitar o “Stax Museum of American Soul Music”, em Memphis, este texto era suposto ter dado conta dessa visita e teria por título, assim mesmo com um ponto de interrogação,  “Birthplace of Soul Music?”.

Mas a música já vai longa e, quiçá, aborrecida, pelo que meterei travões às quatro rodas e prosseguirei  mais tarde.

Mude-se  então o título do texto para  “Empanelado”, coisa que duvido que exista no dicionário…   

E se alguém tiver a infeliz ideia de espetar isto num blogue, já fica a saber… Escolha uma panela como  fotografia…! E não se esqueça da tampa...


Texto de Luís Miguel Mira

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