É estranho que, gostando eu hoje tanto de música, não tenha guardado da minha
infância grandes memórias musicais.
Tal como
acontece com quase todas as mães, a minha cantar-me-ia também, certamente,
canções de embalar.
Mas eu não me
recordo de nenhuma…
Lembro-me do
doce cheirinho do “Vick Vaporub” sobre o peito…
Das inúmeras
tentativas falhadas para me ensinar a rezar o “Padre Nosso”, na hora de
adormecer…
Mas de
canções de embalar, nada.
Na falta
delas, lembro-me muito bem de uma cantilena meio poética que a minha Mãe me
dizia ao deitar, e que reza assim:
“A morte é
certa, dela ninguém se escapa.
Mas hei-de
escapar eu….
Compro uma
panela.
Escondo-me
dentro dela muito bem.
A morte passa
e diz: “hum!, aqui não está ninguém”…
Adeus meus
senhores, passem todos muito bem…!”
Eu nem
consigo perceber muito bem como é que uma história destas era contada a uma
criança ao adormecer…
Mas eu não
faria a mínima ideia do que era a Morte… Para mim, a história não devia passar
de uma curiosa versão do “jogo das escondidas”. E talvez que a minha Mãe
acompanhasse a récita com divertidos gestos de expressão corporal, e fosse isso
que me levasse a pedir-lhe a mesma cantiga todas as noites…
Mas, bem vistas
as coisas, aquela curta história até será bastante adequada a estes tempos de
pandemia que atravessamos, porque é mesmo assim que eu me sinto hoje, mais de
sessenta anos depois. Bem fechadinho dentro de uma panela, à espera que a Morte
passe ao largo e não queira nada comigo…!
Por essa
altura, na nossa casa do Mercado Geral de Gados, em Entrecampos (onde depois se
instalou a Feira Popular), lembro-me da minha Mãe a tocar piano e a cantar o
“Que Sera, Sera”, que nesses tempos devia fazer furor na Rádio pela voz da
Doris Day.
Era um
belíssimo piano “Steinway & Sons” que lhe coubera por herança e que era a
menina dos seus olhos.
Gostava muito
de ver a minha Mãe a cantar e a tocar, mas a verdade é que não me parecia
impressionar muito com os bonitos sons que emanavam do piano. Para mim, o piano
era motivo para brincadeiras, às escondidas… Dar o maior número possível de
voltas no banco giratório… Carregar nos pedais… Bater teclas sem sentido…
Esse piano
acabaria por ter um fim trágico.
Vendida a
nossa quinta da Tala, nos arredores de Sintra, nos finais dos anos 50, o meu
Pai teria prometido à minha Mãe que parte do dinheiro dessa venda seria
investido na compra da moradia dos seus sonhos, onde certamente haveria muito
espaço para um piano.
Mas quando
tivemos de sair de Entrecampos os meus Pais alugaram casa ali perto, defronte
do jardim do Campo Pequeno. Ainda me lembro de ter visto o piano na sala
de jantar dessa casa, mas não poderia ser uma solução definitiva… Era demasiado
grande eocupava demasiado espaço.
O piano foi
então levado para a Quinta de Moscavide, que não era nossa mas estava ao
serviço da empresa de que o meu Pai era sócio, com o solene compromisso de que
ficaria bem guardado e que voltaria a ter um espaço condigno logo que fosse
comprada a tão badalada moradia.
Mas, como na
canção da Doris Day, o que teria de acontecer aconteceria, e não estava escrito
que a minha Querida Mãe teria direito à casinha dos seus sonhos.
O dinheiro da
quinta da Tala foi investido em negócios, do Campo Pequeno saímos para um
grande casarão na Avª da República e de moradias nunca mais se falou…
Um dia, de
passagem por Moscavide, a minha Mãe deparou com o piano a um canto, coberto de
pó, com galos e galinhas por cima, como num filme do Buñuel, e com as
magníficas teclas de marfim arrancadas.
Ficou em
estado de choque, a minha pobre Mãe!
O meu Pai
nunca percebeu – ou não quis perceber… - que o piano, para ela, era muito mais
do que um simples instrumento musical. Eram recordações dos tempos em que uma
menina e moça prendada tocava piano e sabia francês … Eram sonhos de vestidos
de cetim envolvidos em pedaços de Chopin…
E nunca mais
me lembro de ter ouvido a minha Mãe cantar.
Deixava que
lhe corresse uma lágrima pelo canto do olho sempre que ouvia o ”Oh Tempo, Volta
Para Trás”, do António Mourão. Aquela parte em que se pede ao tempo para
nos voltar a dar tudo aquilo que perdemos deveria ser demais para o seu pobre
coração...
Quanto ao meu
Pai, não me lembro de o ter ouvido alguma vez cantar.
Quando estava
feliz, assobiava. Ou melhor, soprava, porque tinha tanto jeito para assobiar
como eu...
Estou a vê-lo
na Tala, em casa dos Trancosos, a jogar às cartas depois de uma boa jantarada,
a refastelar-se para trás na cadeira, cigarrilha numa mão e conhaque na outra,
a assobiar o “Petite Fleur”, do Sidney Bechet…
Talvez seja
pouco para memória musical de um Pai, mas é o que se arranja… Em contrapartida,
aprendi imenso sobre touradas e sobre os bons restaurantes de Lisboa e
arredores…!
Da minha
Querida prima Lena, assim uma espécie de irmã mais velha (ela gostava de dizer
que eu é que era o seu filho mais velho…) que passava largas temporadas em
nossa casa, o que me dá mais prazer recordar é Paço d’Arcos, numa noite de
Verão no restaurante sobre a praia. Havia música no ar vinda de uma “Juke Box”,
julgo eu, e um grupo de adultos que dançava em fila indiana à volta da
esplanada uma música que só muitos anos mais tarde vim a saber ser do grande
Dorival Caymmi.E a minha prima a chamar-me para me juntar aos crescidos e eu a
ir assim com ela, para a Maracangalha e de chapéu de palha…
Ainda hoje um
bonito luar sobre as águas, música, companhia de amigos e um bom petisco são,
para mim, garantia de Felicidade absoluta. Se possível, tudo junto…!
Do meu
Querido irmão José Carlos, a quem devo o gosto pelo Cinema, não me lembro de
muita coisa, a não ser de o ver a estudar e a ouvir música no quarto, enquanto
eu procurava adormecer. Era o mais velho dos irmãos e aquele que mais virado me
parecia estar para a Música Clássica, coisa que não dá muito jeito para
trautear… Mais tarde, quando já estava a fazer o Serviço Militar em Macau, vim
a saber que era um grande fã dos Kraftwerk e de John McLaughlin...
O meu irmão
Jorge, o único sobrevivente dos Irmãos, era aquele que, vistas agora as coisas
à distância, me parecia ter o gosto musical mais apurado para a música desses
tempos. Levava revistas de música, que eu folheava, e parece-me ter vindo dele
a ideia de se começar a ouvir o “Em Órbita” lá em casa… Muito mais tarde, já em
Serviço Militar em Angola, ajudei a namorada e futura mulher a comprar-lhe uns
discos e fiz-lhe umas gravações. Fiquei contente quando, muitíssimos anos
depois, ele me contou como era surreal ouvir o “Colour My World”, dos Chicago,
à noite em pleno mato...
O Jorge
gostava de Fats Domino, mas não me lembro de o ter visto cantarolar grande
coisa quando era mais novo. Com uma única exceção… Tinha alguns dotes
vocais e lembro-me que imitava na perfeição a abertura instrumental do “I Feel
Fine”, dos “Beatles”. Eu, de tanto o ouvir fazer aquilo, tornei-me também um
especialista na matéria, mas só uns anos mais iria conseguir identificar
a música.
A minha
Querida irmã Rosa Maria, a Zita, seria aquela a quem mais ficariam ligadas as
minhas memórias musicais da adolescência. Lá em casa era ela a verdadeira fã
dos Paul Anka, dos Pat Boone, dos Ricky Nelson e dos Elvis Presley.
À noite, já
na Avº da República, ouvíamos a Rádio na salinha pequena, na companhia da nossa
empregada, a Cesália. Era o “Quando o Telefone Toca”, do Senhor Matos Maia e do
Senhor Joaquim Pedro, onde todas as noites, invariavelmente,
ouvíamos aquilo a que as meninas então chamavam a “Melodia do Desespero”, que
não era mais do que a “Unchained Melody”, dos “Righteous Brothers”…
E havia,
também, um outro programa para o qual se devia telefonar previamente para
escolher uma canção, e a mais votada era passada na Rádio. Lembro-me de eu
próprio ter telefonado a votar, certamente a pedido delas, no “Sabor a
Sal”, do António Calvário…!
Por essa
altura deveria andar pelos meus 11/12 anos, o que já era muito boa idade para
ter juízo… Esse pé em falso poderia muito bem ter traçado o meu destino mas,
felizmente, assim não aconteceu e coisa compôs-se...
Com exceção
do Jorge, felizmente ainda vivo, todos estes meus Entes Queridos já
desapareceram, levando-me agora a sentir na pele, dolorosamente, aquela
afirmação que há muitos anos atrás me lembro de ter ouvido num filme do
Truffaut e à qual me limitara a achar, então, imensa graça...: chega uma altura
da nossa Vida em que chegamos à conclusão de que conhecemos mais mortos do que
vivos…
Mas falei do
que a música me fazia recordar em todos eles, e pouco falei de mim.
Voltando ao
início da conversa, é claro que teria gostado imenso de possuir uma “lullaby” a
que hoje pudesse chamar minha..
À falta dela,
a música mais antiga que me lembro de ter gostado foi “A Mula da Cooperativa”,
cantada pelo Max… Sempre que passava na Rádio iam a correr chamar-me e eu
ria-me à gargalhada com o raio da mula a zurrar…
Depois,
ainda nos tempos do Mercado, houve aquela que terá sido a primeira música de
língua inglesa a ficar-me no ouvido e que mais tarde vim a saber que era “A
Wonderfull Time Up There”, do Pat Boone.
Dois ou três
anos mais tarde, talvez já no Campo Pequeno, uma outra que me ficou na memória
foi“Wooden Heart”, cantada pelo Elvis Presley. Não sei se terei visto no cinema
de Paço d’Arcos, com os meus irmãos, o filme “G.I. Joe” e terei achado graça à
cena das “marionetes” com a miudagem à volta. onde a música aparecia, ou se por
qualquer outro motivo, mas a verdade é que nunca mais me esqueci dessa
música.
A casa do Campo
Pequeno é aquela que associo mais à música, o que não é de estranhar porque se
eu tinha mais ou menos 6 anos quando para lá nos mudámos, os meus três irmãos
teriam 13, 14 e 15 anos, idade mais do que suficiente para se dedicarem à
música com outra atenção.
Lembro-me de
por lá existir um pequeno gira-discos muito básico e de ver vários discos de 45
rotações empilhados, a maior parte dos quais deviam ter sido emprestados porque
não estou a ver o meu velho Pai a dar-lhes muito dinheiro para a compra de
discos. Quase tudo música francesa e italiana, mas nada que me tivesse
ficado muito no goto...
Mas a verdade
é esta: por essa altura eu não devia ligar muito à música e nem o perverso
desejo tinha de ouvir os discos às escondidas, quando os meus irmãos não
estavam em casa… Gostava mais de lhes pegar para ver as fotografias, do que
propriamente de os ouvir,,,
Até que por
volta dos meus 9/10 anos ocorreu um facto que iria mudar por completo a minha
relação com a música.
No Cinema
Roma passou “Mocidade em Férias”, com o Cliff Richard e os Shadows, que hoje
sei ter sido realizado pelo inglês Peter Yates.
O filme era
para “Maiores de 12 Anos” mas os meus irmão levaram-me quando nem sequer 10
anos tinha. Fizeram disso um grande mistério e quando estávamos no “foyer”
disseram-me que tinha de ter muito cuidado porque a qualquer momento um fiscal
poderia aparecer e pôr-me na rua… O que eu sofri naqueles breves minutos, em
que todos os olhares me pareceram altamente ameaçadores…
Depois entrei
na sala, as luzes apagaram-se e ….. continuei a sofrer…. Não é que o raio do
filme era a preto e branco…! Quem é que vai ao Cinema para maiores de 12 anos
ver um filme a preto e branco…?? Para isso havia a televisão…! Mas num
passe de magia o preto e branco inicial transformou-se em cor e depois a
história continuou pela estrada fora a bordo daquele enorme autocarro vermelho
e com aquela maravilhosa música a surgir de tempos a tempos… O meu primeiro “road
movie”, certamente, eu que tanto gosto de “road movies”…
Fiquei
extasiado!
Tornei-me no
maior fã de Cliff Richard das Avenidas Novas…!
Embora poucas
palavras soubesse em inglês, eu sabia de cor as músicas do filme de que mais
gostara e cantava-as para dentro e para fora de mim quando as ouvia na Rádio :
o “Summer Holliday”, o “Bachelar Boy”, o “Dancing Shoes”, o “The Next Time”….
A partir
desse momento a minha relação de desapego pela Música nunca mais seria a mesma
e ainda hoje, se me preparo para fazer uma longa viagem de carro para a qual
tenho de levar uma pilha de CD’s, é certo e sabido que entre eles estará uma
compilação de Cliff Richard e os Shadows desse início dos anos sessenta…
Depois, já na
Avº da República, vem a fase de ouvir Rádio com a minha irmã de que já falei e
mais tarde, sem saber muito bem como nem porquê, fui parar à “Soul Music”.
A minha irmã
não quis prosseguir os estudos. Fez o curso da Escola Lusitânia Feminina e
começou a trabalhar muito cedo, como Secretária.
Para além de
me levar quase todos os Domingos ao Cinema Paris ver uma sessão dupla, a Rosa
Maria também começou a comprar, com alguma frequência, os discos que eu lhe
pedia, e que eram os últimos sucessos do Otis Reding, da Aretha Franklyn, de
Sam & Dave e por aí fora. Devorava esses discos e também os sabia de cor
esalteado.
Curiosamente,
não me lembro de ter tido nenhuma “pancada” especial pelo Beatles, embora
comprasse as pastilhas elásticas e colecionasse os bonecos...
Depois
comecei a dar mais atenção ao “Em Orbita” que já se ouvia lá por casa, e a
Música passou a ser outra. Os meus amigos também estavam na mesma onda,
como era o caso do João Pedro, que era filho único e que tinha uma enorme capacidade
de chantagem sobre a Mãe, a qual lhe permitia ir sacando o dinheiro necessário
para comprar em Portugal, ou importar de Inglaterra, o que mais lhe
interessava. E por essa altura já não estávamos na era dos 45 rotações, mas na
dos LP’s, que iriam mudar, para sempre, a nossa relação com a música…
Mas depois, e
até hoje, os nossos destinos musicais iriam divergir: o João ficaria agarrado
aos seus Stones e aos seus Isaac Hayes e eu iria partir, de mansinho, para as
minhas “músicas de passarinhos”…
Uff!
É verdade que
vim de longe, de muito longe, mas só agora me dei conta do imenso que andei
para aqui chegar…
A pretexto de
vos contar que gostara muito de música Soul na adolescência, e que isso
tinha despertado o meu interesse em visitar o “Stax Museum of American Soul
Music”, em Memphis, este texto era suposto ter dado conta dessa visita e teria
por título, assim mesmo com um ponto de interrogação, “Birthplace of Soul
Music?”.
Mas a música
já vai longa e, quiçá, aborrecida, pelo que meterei travões às quatro rodas e
prosseguirei mais tarde.
Mude-se
então o título do texto para “Empanelado”, coisa que duvido que exista no
dicionário…
E se alguém
tiver a infeliz ideia de espetar isto num blogue, já fica a saber… Escolha uma
panela como fotografia…! E não se esqueça da tampa...
Texto de Luís Miguel Mira
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