Durante muito tempo soube de cor um soneto de
David Mourão-Ferreira que começa assim: «Ouvir, ouvir de noite uma ambulância…»
Um dia, folheando ao acaso o Infinito pessoal ou a arte de amar, voltei a ler
esse soneto e descobri que a minha memória o havia reescrito, substituindo umas
palavras, invertendo a posição de outras, de tal modo que o poema de que me
lembrava era já substancialmente diferente daquele que David escrevera. E, hoje
ainda, já não sei de novo que parte dele me pertence e que parte pertence ao
poeta. Como, se na verdade, o tivesse esquecido, e recordasse um poema meu
escrito com palavras suas.
…Do mesmo modo a nossa vida passada se
desvanece como uma memória alheia. E, contudo, essa é provavelmente a nossa
verdadeira vida.
Manuel
António Pina em Crónica, Saudade da Literatura
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