terça-feira, 12 de maio de 2020

CONVERSANDO


Durante muito tempo soube de cor um soneto de David Mourão-Ferreira que começa assim: «Ouvir, ouvir de noite uma ambulância…» Um dia, folheando ao acaso o Infinito pessoal ou a arte de amar, voltei a ler esse soneto e descobri que a minha memória o havia reescrito, substituindo umas palavras, invertendo a posição de outras, de tal modo que o poema de que me lembrava era já substancialmente diferente daquele que David escrevera. E, hoje ainda, já não sei de novo que parte dele me pertence e que parte pertence ao poeta. Como, se na verdade, o tivesse esquecido, e recordasse um poema meu escrito com palavras suas.
…Do mesmo modo a nossa vida passada se desvanece como uma memória alheia. E, contudo, essa é provavelmente a nossa verdadeira vida.

Manuel António Pina em Crónica, Saudade da Literatura

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