Livro de Crónicas
1º volume
António Lobo Antunes
Publicações Dom Quixote, Lisboa Novembro de 1998
Serei como aquela prima idosa surdíssima, outrora bonita, com uma
enorme telefonia à cabeceira, a quem o enfermeiro que lhe dava as injecções
para o reumático comentou
- Que lindo rádio que a senhora tem
e ela num suspiro, de nádegas ao léu à espera da seringa, orgulhosa e
coquete
- Havia de o ter visto aqui há quarenta anos.
Devo estar a ficar velho. E no entanto, sem que me dê conta, ainda me
acontece apalpar a algibeira à procura da fisga. Ainda gostava de ter um
canivete de madrepérola com sete lâminas, saca-rolhas, tesoura, abre-latas e
chave de parafusos. Ainda queria que o meu comprasse na feira de Nelas um
espelhinho redondo com a fotografia de Yvonne de Carlo em fato de banho do
outro lado. Ainda tenho vontade de escrever o meu nome depois de embaciar o
vidro com o hálito. Ainda caminho pela borda do passeio sem pisar o intervalo
das pedras. Ainda me apetecia que o meu avô me viesse fazer uma festa à cama.
Ainda gosto de resolver os hieróglifos comprimidos dos Almanaques Bertrand do sótão
organizados pela Sra. D. Maria Fernandes Costa e escrver nas soluções quando a
pergunta é Grande Escritor Português Infelizmente Já Falecido, o nome do
emérito poeta General Fernandes Costa. Pensando bem
(e digo isto ao espelho)
Não sou um senhor de idade que conserva o coração menino. Sou um menino
cujo envelope se gastou.
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