Numa recente entrevista que o escultor Alberto
Carneiro deu ao Público, Anabela Mota
Ribeiro perguntou-lhe:
Lia livros?
Alberto Carneiro respondeu-lhe:
Li imenso. A
Gulbenkian tinha bibliotecas itinerantes. A carrinha passava todos os meses por
São Mamede e eu requisitava livros. Li sempre muito, desde criança. Foi isso
que me abriu os horizontes. O que é que requisitava? Aquilino Ribeiro, Miguel
Torga. Camões. Do Pessoa, não me lembro.
Inestimável o papel que as Bibliotecas Itinerantes
da Gulbenkian deram a este país que Salazar quis inculto, submisso, assustado.
O suficiente era saber ler, escrever, contar, mas não valia a pena mais
esforço. Havia campos para trabalhar, mares para pescar, gado para tratar, ruas
para calcetar.
Mesmo os que sabiam ler, grande parte eram incapazes
de compreender aquilo que liam.
Para Salazar, ser culto era um pecado mortal.
Camilo Castelo Branco em Os Vulcões de Lama:
A poderosa
razão que o lavrador Roberto Rodrigues opunha para não mandar ensinar a ler o
filho, era - que ele pai também não sabia ler, e mais arranjava lindamente a
sua vida. Esta vinha a ser a razão capital, reforçada por outras subalternas e
praticamente bastante persuasivas.
- Se o rapaz souber ler – argumentava
triunfantemente o idiota – assim que chegar a idade, às duas por três, fazem-no
jurado, regedor, camarista, juiz ordinário, juiz de paz, juiz eleito. São favas
contadas. Depois, enquanto ele vai à audiência ou à Camara, a Cabeçais daqui
uma légua, os criados e os jornaleiros ferram-se a dormir a sesta de cangalhas
à sombra dos carvalhos, e o arado fica também a dormir no rego. E ademais, isto
de saber ler é meio caminho andado para
asno e vadio. E citava exemplos, personalizando meia dúzia de brejeiros
que sabiam ler e eram mais asnos e vadios que os analfabetos.
Alberto Carneiro vivia numa aldeia perto do Porto,
isolada, triste e a chegada das Bibliotecas Itinerantes da Gulbenkian funcionou como um pauzinho na engrenagem, uma possibilidade de os
imperativos de Salazar não terem resultados mais funestos.
É assim que a Gulbenkian faz o resumo das suas Bibliotecas Itinerantes:
Ainda em 1958, baseado na experiência
pioneira de Branquinho da Fonseca e sob a sua direcção, foi criado pela
Fundação Calouste Gulbenkian, instituição privada, o Serviço de Bibliotecas
Itinerantes, com o intuito de tentar resolver um problema: o da educação
pós-escolar dos cidadãos.
As bibliotecas itinerantes ou
carros-biblioteca levavam a bordo cerca de dois mil volumes arrumados nas
estantes. Nas prateleiras de baixo, encontravam-se os livros para crianças, nas
prateleiras do meio a literatura de ficção, de viagens e biografias e, por fim,
nas de cima os livros menos procurados, de filosofia, poesia, ciência e
técnica.
Em 1962 existiam 47 bibliotecas
itinerantes, o número de leitores rondava os trezentos mil e os livros
emprestados atingiam os 3 milhões.
Durante a ditadura salazarista, que
assentava a sua acção na manutenção da censura e do obscurantismo da sociedade
portuguesa, o livro e a leitura eram um luxo e também, uma actividade
arriscada. Foi, no entanto, a acção levada a cabo pela Fundação Calouste
Gulbenkian que dotou o país de uma rede de bibliotecas coerente, com o
objectivo principal de alcançar e promover o gosto pela leitura.
Uma explosão de memórias leva-me até aos jardins da
infância.
Em alguns jardins de Lisboa, existia um pequeno
armário cinzento com alguns livros, mas as leituras mais disputadas eram o Condor Popular e afins.
Um funcionário da Câmara zelava pelo serviço.
Deslocava-me, então, da Penha de França até ao
Jardim Constantino para, nessas pequenas, mas úteis, bibliotecas ler o Condor Popular, o velho Mandrake e os seus passe de mágica
O Carlos Alberto, cujo pai tinha mais posses
do que os pais dos outros putos da rua, fazia com que o Cavaleiro Andante e o Mundo de Aventuras, passassem de mão em mão. Nenhum exemplar podia ficar mais
de um dia nas mãos de cada puto. Se isso acontecesse, o Carlos Alberto
determinava que para o prevaricador não havia leitura na semana seguinte.
Ainda hoje, quando passo pelo jardim Constantino,
olho o espaço onde se encontrava o armário dos livros e revistas, que foi o meu
pontapé de saída para outras aventuras romanescas que tiveram como referências
Emílio Salgari, Júlio Verne, Walter Scott, misturados com as aventuras dos Cinco.
Mais tarde vim a saber pelo José Gomes Ferreira, que foi o seu pai, Alexandre Ferreira, também fundador da Universidade Livre e da Associação dos Inválidos do Comércio que, como vereador da Câmara Municipal, lançou a ideia de instalar bibliotecas nos jardins públicos
Bibliotecas onde os leitores poderiam não só requisitar os livros para ler ali mesmo, na dureza dos bancos, mas, quando o desejassem, levá-los para casa com a condição de devolvê-los no dia seguinte. (1)
Mais tarde vim a saber pelo José Gomes Ferreira, que foi o seu pai, Alexandre Ferreira, também fundador da Universidade Livre e da Associação dos Inválidos do Comércio que, como vereador da Câmara Municipal, lançou a ideia de instalar bibliotecas nos jardins públicos
Bibliotecas onde os leitores poderiam não só requisitar os livros para ler ali mesmo, na dureza dos bancos, mas, quando o desejassem, levá-los para casa com a condição de devolvê-los no dia seguinte. (1)
Em 1961 a Câmara Municipal de Lisboa lançou as Bibliotecas Itinerantes que
percorriam os bairros de Lisboa.
Já depois do 25 de Abril, lembro-me de ver uma carrinha
estacionada na Praça Paiva Couceiro, encontrei uma outra no jardim junto à
Igreja da Encarnação.
Em Fevereiro de 2011 o Partido Ecologista Os Verdes entregou na Assembleia Municipal
de Lisboa um requerimento questionando a Câmara sobre as razões da suspensão do
serviço de Bibliotecas Itinerantes.
Ao que parece a interrupção teve a ver com custos de
reparação das viaturas.
Nos tempos de internetes
e coisas-que-tais, as bibliotecas itinerantes viraram dinossauros.
Das Bibliotecas Itinerantes da
Câmara Municipal de Lisboa nunca mais houve notícia.
Alguém na Câmara terá concluído que já ninguém se
desloca a um jardim para ir buscar um livro para ler.
Altura ideal para cortar nas despesas e aplicar o
dinheiro em folclore.
Sempre dá mais nas vistas!...
Na Feira do Livro do ano
passado puseram lá uma dessas Bibliotecas Itinerantes.
Se já não foram extintas, estão em vias de…
Mas as Bibliotecas
Itinerantes da Gulbenkian e da Câmara fazem parte do imaginário de gerações.
E não é sem emoção que esses tempos renascem como
gratas memórias.
Final de O
Raio Verde de Júlio Verne
- Mas com efeito, minha querida Helena –
argumentou Olivier Sinclair -, não o vimos, esse raio que quisemos tanto ver!
- Vimo-lo melhor – disse baixinho a
jovem senhora. – Vimos a felicidade, aquela que a lenda ligava à observação
deste fenómeno!... Visto que o encontrámos, meu querido Olivier, que ele nos
baste, e abandonemos aos que não o conhecem, e quiserem conhecê-lo, a busca do
raio verde!
(1) José Gomes Ferreira em Relatório de Sombras, Moraes Editores, Lisboa Setembro de 1980.
(1) José Gomes Ferreira em Relatório de Sombras, Moraes Editores, Lisboa Setembro de 1980.
2 comentários:
Exmo senhor:
Encontrei o seu blogue ao pesquisar na net imagens de bibliotecas itinerantes. Não posso deixar de o informar que tem uma informação errada: a CML nunca extinguiu o serviço de Biblioteca Itinerante o qual funciona sem interrupções há 53 anos, tendo neste momento 12 locais de paragem dentro da cidade de Lisboa para além de uma colaboração extensa com diversas instituições. Reactivamos em Março a paragem no mencionado Jardim Constantino, onde estaremos nos próximos dias 7 e 21 de Maio (14h-16h)caso tenha possibilidade de nos visitar e conhecer a "nova" carrinha.... já dos anos 90 mas equipada com dois comnputadores para o público (com acesso à net) e que serviu de modelo para várias das nossas congéneres nacionais (há uma estimativa de cerca de 82 bibliotecas itinerantes a operar em Portugal). O nosso calendário está disponibilizado no site blx.cm-lisboa.pt e estamos ao seu dispôr via o mail bib.itinerante@cm-lisboa.pt. A convite da Biblioteca Municipal da Penha de França colaboraremos numa actividade agendada para a manhã da próxima 3ª feira dia 22, na Praça Paiva Couceiro, teremos muito prazer em receber a sua visita. Melhores cumprimentos. Cristina Borges (Bibliotecária)
Muito obrigado pelos seus úteis esclarecimentos.
Devo dizer que existiu pouco rigor na busca de informação que realizei sobre as Bibliotecas Itinerantes da CML.
As que, então, encontrei apontavam para a suspensão do serviço.
Se bem que o texto tivesse mais um pendor memorialista seria elementar que houvesse um outro cuidado no trabalho de pesquisa.
Mas fico muito feliz que o meritório trabalho pedagógico da CML continue em actividade.
Será impossível estarmos, hoje, na Praça Paiva Couceiro, mas já colocámos na agenda uma visita, em Maio, ao Jardim Constantino.
Muito obrigado pelas informações e esclarecimentos que nos prestou.
Um bom trabalho.
Couceiroconveniência que tivesse recorrido
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