Permitam-me que fale em nome das vítimas, particularmente daquelas de
que não sabemos o nome nem o grau de sofrimento. Milhares de presos do fascismo
lusitano passaram por aqui. Por este Aljube. E por outros locais de tortura e
de castigo: Rua do Heroísmo no Porto, Rua António Maria Cardoso em Lisboa,
sedes da Pide em Coimbra e noutras cidades, forte de Caxias, fortaleza de
Peniche, fortaleza de Angra do Heroísmo, Angola. Timor, Tarrafal. Muitos foram
mortos nas prisões e na rua.
O tempo lança um véu de esquecimento sobre a vida dos homens e a dos
espaços em que se moveram. E quem sempre viveu em liberdade tem dificuldade em
entender que num tempo bem próximo se policiavam e reprimiam as palavras, as
organizações e os movimentos dos cidadãos e se varriam as manifestações
populares a tiro de metralhadora ou pela ação de homens, fardados e à paisana,
de pistola em punho ou no galope dos cavalos com espadas nuas nas mãos.
O processo histórico não segue em linha reta num movimento ascensional
até ao paraíso. Balança num vaivém ondular mas nunca no mesmo plano. E se as
condições objetivas empurram as vontades para movimentos contraditórios, a
memória é indispensável para não cairmos nos mesmo precipícios e para usarmos,
tanto quanto nos for possível, a experiência do que correu melhor. Mestra da
vida, como diziam os nossos renascentistas e geógrafos, a experiência é um
presente carregado de memória.
Hoje, ao institucionalizar o Museu da Resistência no espaço do Aljube,
a Câmara de Lisboa dá um alto exemplo de cidadania. O local escolhido está
carregado de história antiga e contemporânea. Situa-se no coração da cidade. As
suas paredes centenárias ombreiam com outros monumentos que preservam a memória
de Lisboa e da nação: a Sé, o Paço a par de São Martinho onde foi morto o conde
Andeiro, o mosteiro de Santo Elói aonde veio, em consagração, o corpo do
Infante D. Pedro, morto em Alfarrobeira, o mosteiro de São Vicente de Fora, o
castelo de Lisboa. Aqui ao lado, na Sé, ouviram missa, atrás da cortina, com o
rei, Pedro Álvares Cabral e Francisco de Almeida antes de navegarem para a
Índia.
Ao Aljube chegavam os presos, depois de identificados e examinados nas
instalações da Pide na Rua António Maria Cardoso. Aqui ficavam dias, semanas,
meses, numa cela pouco maior do que o comprimento e a largura dum homem. Com o
bailique levantado, apertado nas altas paredes e vigiado pelo ralo das duas
portas, o preso podia dar um passo em frente e outro à retaguarda. O que fazer?
Será esta noite que o guarda aparece no ralo da porta com voz
escarninha: prepare-se para ir à polícia! Alta madrugada, era lançado das
escadas para dentro da ramona como um fardo. Resistirei
?
Durante seis meses de que se alimentavam os presos? Não era certamente
do rancho miserável. Alimentavam-se quase só da memória. Trazia-lhe
recordações, inimagináveis, da infância, da adolescência, da mulher ou das
mulheres amadas, dos camaradas e amigos que queria defender para não caírem no
seu mesmo inferno.
De uma das celas podia ver os pombos na rosácea da Sé. Da Sé chegavam
os cânticos da Pascoa. Nas paredes corriam as letras sinais a dar ânimo ou
notícias. Da rua, vinha o ruído metálico dos elétricos, até ao último, no
silêncio da madrugada.
Depois da tortura, na Rua António Maria Cardoso, vencedores e vencidos
regressavam às celas com marcas profundas no corpo e no espírito. Sabiam que o
combate ainda não terminara, que viriam novas batalhas. E o prémio da vitória
poderia ser bebido em anos e anos de sofrimento.
Presos houve que planearam e alcançaram a fuga. Das celas saiu uma
noite o operário vidreiro José Moreira para não mais voltar. Atiraram-no do
alto duma janela depois de o matarem na tortura. Antes, em liberdade,
tinham-lhe perguntado: Se fores preso, que farás? - Farei o que puder.
As sociedades que não preservam a memória não acautelam o seu futuro.
Hoje demos um passo decisivo. Bem hajam! Não, não apagarão a memória!
Depoimento do historiador António Borges Coelho no
dia em que foi apresentado o projecto – Museu do Aljube-Resistência e Liberdade, que abrirá portas em 1974 ano em que o 25 de Abril faz 40 anos.
Legenda: imagem do Correio da Manhã.
2 comentários:
2014!
LT
Já rectificado.
A importância de terleitores atentos.
Obrigado e um abraço
Enviar um comentário