Até Amanhã, Camaradas
Manuel Tiago
Capa: Luís Filipe da Conceição
Edições Avante!, Lisboa 1974
- A nossa vida é dura… - suspirou finalmente Paulo. E depois de nova
pausa continuou: - Tão dura que, porque a aceitamos e escolhemos, há quem nos
considere gente especial, que gosta da dureza, gente fria e indiferente à dor,
ao prazer e ao afecto, gente que age e não sonha.
Surpreendida, Maria levantou os olhos para o camarada. De óculos
descaídos, olhava-a a de frente. Mantinha a habitual expressão tímida e
suplicante, mas havia nesta qualquer coisa de novo e de grave que não vira
ainda. As palavras saíam-lhe numa aragem velada e triste, como se nunca as
tivesse pensado nem as estivesse pensando, como se não tivesse necessidade de
articulá-las, como se se limitasse a abrir o seu íntimo à observação alheia.
- Muitas coisas diferenciam o homem - continuou Paulo - Acima de
todas, diferencia-o a faculdade de sonhar. Na origem de tudo quanto de
belo se fez na história e de tudo quanto de belo possamos fazer, na origem de
todas as realizações e façanhas, sempre e sempre encontramos essa maravilhosa
faculdade de sonhar. Todos sonhamos
amiga, todos. Sonhamos com um melhor mundo onde uns homens não vivam da dor de
outros homens, onde se não matem crianças com metralhadoras, onde o ar se
respire com a liberdade. É esse o sonho que nos dá forças para lutar e para
sofrer, para nos afirmarmos felizes na nossa dura vida, mesmo quando perdemos
muito do que nos é mais querido. Mas não é esse o nosso único sonho.
Mentiríamos aos outros e a nós próprios se negássemos que sonhamos também com a
felicidade pessoal, que ansiamos ardentemente o amor, filhos que o inimigo não
mate, tranquilidade, um mínimo de conforto. Os militantes dão tudo, amiga, mas
não devem renunciar a nada. Se matássemos o sonho, matávamo-nos também a nós próprios
como seres humanos que somos.
Maria olhava com surpresa crescente o camarada, de ordinário tão parco
de palavras, agora tão eloquente. E o que mais a surpreende não são tanto as
palavras que ouve, mas qualquer coisa de fundo, sentido, dramático e apaixonado
que nelas transparece.
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