quarta-feira, 6 de novembro de 2013

OLHAR AS CAPAS


 Até Amanhã, Camaradas

Manuel Tiago
Capa: Luís Filipe da Conceição
Edições Avante!, Lisboa 1974

- A nossa vida é dura… - suspirou finalmente Paulo. E depois de nova pausa continuou: - Tão dura que, porque a aceitamos e escolhemos, há quem nos considere gente especial, que gosta da dureza, gente fria e indiferente à dor, ao prazer e ao afecto, gente que age e não sonha.
Surpreendida, Maria levantou os olhos para o camarada. De óculos descaídos, olhava-a a de frente. Mantinha a habitual expressão tímida e suplicante, mas havia nesta qualquer coisa de novo e de grave que não vira ainda. As palavras saíam-lhe numa aragem velada e triste, como se nunca as tivesse pensado nem as estivesse pensando, como se não tivesse necessidade de articulá-las, como se se limitasse a abrir o seu íntimo à observação alheia.
- Muitas coisas diferenciam o homem - continuou Paulo - Acima de
todas, diferencia-o a faculdade de sonhar. Na origem de tudo quanto de belo se fez na história e de tudo quanto de belo possamos fazer, na origem de todas as realizações e façanhas, sempre e sempre encontramos essa maravilhosa faculdade de sonhar.  Todos sonhamos amiga, todos. Sonhamos com um melhor mundo onde uns homens não vivam da dor de outros homens, onde se não matem crianças com metralhadoras, onde o ar se respire com a liberdade. É esse o sonho que nos dá forças para lutar e para sofrer, para nos afirmarmos felizes na nossa dura vida, mesmo quando perdemos muito do que nos é mais querido. Mas não é esse o nosso único sonho. Mentiríamos aos outros e a nós próprios se negássemos que sonhamos também com a felicidade pessoal, que ansiamos ardentemente o amor, filhos que o inimigo não mate, tranquilidade, um mínimo de conforto. Os militantes dão tudo, amiga, mas não devem renunciar a nada. Se matássemos o sonho, matávamo-nos também a nós próprios como seres humanos que somos.
Maria olhava com surpresa crescente o camarada, de ordinário tão parco de palavras, agora tão eloquente. E o que mais a surpreende não são tanto as palavras que ouve, mas qualquer coisa de fundo, sentido, dramático e apaixonado que nelas transparece.

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