Segundo Livro de Crónicas
António Lobo Antunes
Capa: Henrique Cayatte
Publicações Dom Quixote, Lisboa Outubro de 2002
Acho que a coisa mais importante que me aconteceu na vida foi uma
viagem de cerca de um mês, a Itália, com o meu avô. O meu avô guiava e eu
sentado ao lado dele, com um volante de plástico, fingia que guiava também. O
carro era um Nash encarnado. O meu volante de plástico, tinha, ao centro, uma
bola de borracha. Apertando a bola emitia um som que na minha fantasia era uma
buzina. O barulho do motor arranjava-o com a boca, de forma que não havia
dúvidas de ser eu quem conduzia o automóvel. De vez em quando o meu avo
fazia-me uma festa na cabeça. É engraçado mas ainda sinto os dedos dele.
Durante os dois primeiros dias o cheiro a gasolina enjoou-me e vomitava
para cartuchos de papel. Íamos ficando em hotéis pelo caminho. Lembro-me dos
gelados que comi em saragoça, lembro-me de assistir a uma tourada em Barcelona
com Luis Miguel Dominguin e de ter ido ao teatro ver Carmen Sevilha. Estive
apaixonado por ela até aos doze anos, altura em que assisti aos Dez Mandamentos
e a troquei por Anne Baxter, a mulher do faraó. Nem Carmen Sevilha nem Anne
Baxter me deram troco por aí além. As paixões demoravam a passar nessa época,
em que tudo era lento. Dias compridíssimos, destes que demoravam séculos a
nascer. O meu padrinho dava-me dinheiro pelos dentes de leite. Se eu fosse
jacaré estava rico.
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