Este disco terá
sido, para muitos, o ficarmos a saber da existência deste extraordinário
cantor.
Os tempos eram
de pouquíssima divulgação do muito que em música, literatura, cinema, qualquer
arte que acontecia além-fronteiras.
As razões são várias
para que assim acontecesse, mas cite-se, como principal, a censura de Salazar,
uma censura que, ao mínimo sinal de algo de progressista, fazia desabar o lápis
azul de coronéis analfabetos.
José Duarte,
rapaz que não deixava créditos por mãos alheias, soube que Ray Charles iria
dar, em Paris, o seu primeiro concerto europeu.
Sabia de cor as
canções de Ray Charles e até as dançava.
Tinha exame
marcado do curso de Economia para esses dias, borrifou-se no dito porque Ray
Charles era fortíssimo chamamento, e, no fundo, já sabia que não queria ser
económico-canudado, e voou para Paris.
Ele entrou em palco guiado por uma loura alta, nova,
esguia, que o levou e, no fim, o trouxe do piano para os bastidores: Foi desde
então que os seus óculos escuros nunca mais me saíram dos olhos. Já tive vários
parecidos. Onde é que ele os compra? De tartaruga! Autênticos alçapões de
escuridão, onde eu me escondia. Que bom!...
Na band debitavam alguns dos seus melhores
companheiros musicais de sempre: Leroy Cooper e David Newman entre os
saxofonistas, o lendário Dicki Wells entre os trombones, uma histórica scção de
trompetes com Philippe Gilbeau, Wallace Davenport, Marcus Belgrave e John Hunt.
Uma das quatro Raelettes era já Margie Hendrix.
Jorge Sena dedicou um poema a Ray Charles.
Jorge Sena dedicou um poema a Ray Charles.
Tem a data de 15 de Março de 1964 e é retirado de Sequências, livro póstumo.
Faz parte da
antologia de Jazz na Poesia em Língua Portuguesa organizada por José
Duarte e Ricardo António Alves:
Cego e negro, quem mais americano?
Com drogas, mulheres e pederastas,
a esposa e os filhos, rouco e gutural
canta em grasnidos suaves pelo mundo
a doce escravidão do dólar e da vida.
Na voz, há o sangue de presidentes assassinados,
as bofetadas e o chicote, os desembarques
de «marines» na China ou no Caribe, a Aliança
para o Progresso da Coreia e do Viet-Nam,
e o plasma sanguíneo com etiquetas de black e white
por causa das confusões.
E há as Filhas da Liberdade, todas virgens e córneas,
de lunetas. E o assalto ao México e às Filipinas,
e a música do povo eleito por Jeová e por Calvino
para instituir o Fundo Monetário dos bancos e dos louros,
a cadeira eléctrica, e a câmara de gás. Será que ele sabe?
Os corais melosos e castrados titirilam contracantos
ao canto que ele canta em sábias agonias
aprendidas pelos avós ao peso do algodão.
É cego como todos os que cegaram nas notícias da United Press,
nos programas de televisão, nos filmes de Holywood,
nos discursos dos políticos cheirando a Aqua Velva e a petróleo,
nos relatórios das comissões parlamentares de inquérito,
e da CIA, do FBI, ou da polícia de Dallas.
E é negro por fora como isso por dentro.
Cego negro, uivando ricamente
(enquanto as cidades ardem e os «snipers» crepitam)
sob a chuva de dólares e drogas
as dores da vida ao som da bateria,
quem mais americano?
Jorge Sena
Uma outra de José Duarte, a propósito de Ray:
Muito se modificou o estilo de Betty Carter desde os
tempos dos seus êxitos com Ray Charles e até anteriores, fins dos anos 50!
«Baby It’s Cold Outside» com Ray, está na História da
Música.
Sem comentários:
Enviar um comentário