terça-feira, 1 de março de 2016

RAY CHARLES



Este disco terá sido, para muitos, o ficarmos a saber da existência deste extraordinário cantor.

Os tempos eram de pouquíssima divulgação do muito que em música, literatura, cinema, qualquer arte que acontecia além-fronteiras.

As razões são várias para que assim acontecesse, mas cite-se, como principal, a censura de Salazar, uma censura que, ao mínimo sinal de algo de progressista, fazia desabar o lápis azul de coronéis analfabetos.

José Duarte, rapaz que não deixava créditos por mãos alheias, soube que Ray Charles iria dar, em Paris, o seu primeiro concerto europeu.

Sabia de cor as canções de Ray Charles e até as dançava.

Tinha exame marcado do curso de Economia para esses dias, borrifou-se no dito porque Ray Charles era fortíssimo chamamento, e, no fundo, já sabia que não queria ser económico-canudado, e voou para Paris.

Ele entrou em palco guiado por uma loura alta, nova, esguia, que o levou e, no fim, o trouxe do piano para os bastidores: Foi desde então que os seus óculos escuros nunca mais me saíram dos olhos. Já tive vários parecidos. Onde é que ele os compra? De tartaruga! Autênticos alçapões de escuridão, onde eu me escondia. Que bom!...
Na band debitavam alguns dos seus melhores companheiros musicais de sempre: Leroy Cooper e David Newman entre os saxofonistas, o lendário Dicki Wells entre os trombones, uma histórica scção de trompetes com Philippe Gilbeau, Wallace Davenport, Marcus Belgrave e John Hunt. Uma das quatro Raelettes era já Margie Hendrix.

Jorge Sena dedicou um poema a Ray Charles.
                                                                                                                                                         
Tem a data de 15 de Março de 1964 e é retirado de Sequências, livro póstumo.

Faz parte da antologia de Jazz na Poesia em Língua Portuguesa organizada por José Duarte e Ricardo António Alves:

Cego e negro, quem mais americano?
Com drogas, mulheres e pederastas,
a esposa e os filhos, rouco e gutural
canta em grasnidos suaves pelo mundo
a doce escravidão do dólar e da vida.

Na voz, há o sangue de presidentes assassinados,
as bofetadas e o chicote, os desembarques
de «marines» na China ou no Caribe, a Aliança
para o Progresso da Coreia e do Viet-Nam,
e o plasma sanguíneo com etiquetas de black e white
por causa das confusões.
E há as Filhas da Liberdade, todas virgens e córneas,
de lunetas. E o assalto ao México e às Filipinas,
e a música do povo eleito por Jeová e por Calvino
para instituir o Fundo Monetário dos bancos e dos louros,
a cadeira eléctrica, e a câmara de gás. Será que ele sabe?

Os corais melosos e castrados titirilam contracantos
ao canto que ele canta em sábias agonias
aprendidas pelos avós ao peso do algodão.
É cego como todos os que cegaram nas notícias da United Press,
nos programas de televisão, nos filmes de Holywood,
nos discursos dos políticos cheirando a Aqua Velva e a petróleo,
nos relatórios das comissões parlamentares de inquérito,
e da CIA, do FBI, ou da polícia de Dallas.
E é negro por fora como isso por dentro.

Cego negro, uivando ricamente
(enquanto as cidades ardem e os «snipers» crepitam)
sob a chuva de dólares e drogas
as dores da vida ao som da bateria,
quem mais americano?

Jorge Sena

Uma outra de José Duarte, a propósito de Ray:

Muito se modificou o estilo de Betty Carter desde os tempos dos seus êxitos com Ray Charles e até anteriores, fins dos anos 50!
«Baby It’s Cold Outside» com Ray, está na História da Música. 


                                                                                                                                                           

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