Hoje é o último dia do ano. Em todo o mundo que este
calendário rege andam as pessoas entretidas a debater consigo mesmas as boas
acções que tencionam praticar no ano que entra, jurando que vão ser rectas,
justas e equânimes, que da sua emendada boca não voltará a sair uma palavra má,
uma mentira, uma insídia, ainda que as merecesse o inimigo, claro que é das
pessoas vulgares que estamos falando, as outras, as de excepção, as incomuns,
regulam-se por razões suas próprias para serem e fazerem o contrário sempre que
lhes apeteça ou aproveite, essas são as que não se deixam iludir, chegam a
rir-se de nós e das boas intenções que mostramos, mas, enfim, vamos aprendendo
com a experiência, logo nos primeiros dias de Janeiro teremos esquecido metade
do que havíamos prometido, e, tendo esquecido tanto, não há realmente motivo
para cumprir o resto, é como um castelo de cartas, se já lhe faltam as obras
superiores, melhor é que caia tudo e se confundam os naipes.
José Saramago em O Ano da Morte de Ricardo Reis
José Saramago em O Ano da Morte de Ricardo Reis
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