A Sophia gostava de dizer que não sabia por que as pessoas celebravam a
passagem do ano porque o ano estava sempre a passar.
O tempo do meu cachimbo estar apagado, o meu copo vazio e a chegar-me a
lembrança do Helder Pinho, na passagem do ano de 1972, a telefonar para casa do
meu pai e a gritar-me, o Helder morava, junto ao Tejo, na Rua da Manutenção: «eh
pá! estou a ouvir a ronca dos barcos no Tejo a saudar o novo ano. Que
maravilha!...que maravilha.» e mais outra lembrança, José Saramago, na
noite estrelada cálida e tranquila de Lanzarote, no findar do ano de 1994: «Ninguém
mais no mundo quer esta paz?»
Agora, segue-se o salto sem rede no vazio incógnito do novo ano.
Será, então, tempo de voltar a acender o cachimbo, voltar a encher o
copo.
Aos poucos, vamo-nos despedindo do Natal, e relembrando uma das mais
interessantes e pungentes canções de Natal , Fairytale Of New York dos Pogues
com a Kirsty MacCall, sabemos que os rapazes do coro
da polícia de Nova Iorque cantavam Galway Bay, enquanto os sinos tocavam
por toda a cidade, ao mesmo tempo que José Tolentino Mendonça, numa das suas
excelentes crónicas no Expresso, abordando a solidão do Natal, revelava
que lera uma carta que o do escritor
Jack London escreveu na manhã de natal, em 1898 quando tinha 20 anos. quando
momentaneamente abandonou as errantes vagabundagens no seu barco pelas
celebrações caseiras do Natal.
«Mas no fundo dos rituais familiares a que ele assiste (a abertura dos
presentes diante da lareira acesa, o risos das crianças felizes, os ornamentos
aconchegantes, os reflexos de uma existência segura…) descobre-se sempre mais
como um estranho, e tudo aquilo que o deveria apaziguar fá-lo afinal descobrir
vencido, como se o seu “bilhete de lotaria da vida tivesse o número errado”.
Ele que passou a adolescência a saltitar entre centros de reeducação, que teve
de lutar para aguentar-se nos estudos, que, para sobreviver, foi ardina,
pescador furtivo, agente de seguros, caçador de focas, pugilista e garimpeiro,
ele homem de têmpera rija sente-se naquela manhã vacilar, perdido dentro do
grande puzzle que o Natal faz parte. A carta que Jack London escreve é uma
espécie de relatório do seu desconforto. Mas creio que não é só isso. É também
um documento sobre a grande solidão que o Natal escancara».
Linhas à frente, José Tolentino pergunta:
“Porque é que o Natal faz
sofrer?”
Guardei sempre um velho recorte do velho «Diário de Lisboa» de
27 de Dezembro de 1976:
“António Manuel, de 14
anos, no dia de Natal, lançou-se de uma janela do Coliseu do Porto, tendo sido
conduzido ao Hospital de Santo António sem fala e com várias fracturas.
O jovem, que é natural do lugar de Idanha, encontra-se numa fase de
recuperação, tendo começado já a articular algumas palavras”
O jornalista fechava assim a notícia:
“De acordo com estatísticas mundiais, a quadra do Natal regista sempre uma
subida de tentativas de suicídio, que alguns psicólogos identificam com uma
maior acuidade em relação à solidão em dias que a maioria das pessoas se reúne
para confraternizar.”
Aquela canção de Brel, deixa-me ser a sombra da tua sombra, a sombra da
tua mão, a sombra do teu cão, mas não me deixes.
Ainda José Tolentino Mendonça:
«O Natal é atravessado por
um dramatismo que nos abala, pois nos retira do feérico entretenimento das
perguntas penúltimas e nos coloca perante as perguntas últimas.»
No que toca a comidas e bebidas vivo enrolado num conservadorismo
bacoco.
Não brinquem comigo, não me venham com histórias de comidas de chefs
e de comida que dizem aos quatro ventos que é saudável, que poderá ser mesmo saudável
mas não me sabe a comida.
Desculpem.
No tocante a bolo-rei, falem-me só do velho bolo-rei não me venham com
cantilenas de bolos-raínha, o que quer que seja.
Hoje tropecei na Avenida Guerra Junqueiro nesta ardósia que me convidava
a um bolo-rei de castanha. Tirei o boneco, o outro eu que anda comigo, que é
um chato de todo o tamanho, disse: «devias provar!...»
Não provei, segui em direcção à Praça de Londres que já não arde como
naquela canção do Zeca, Rio largo de Profundis, uma neta para nascer, amor
avenidas novas Praça de Londres a arder, doálbum Venham mais
Cinco.
E não resisto, sobre isto do veganismo, dos vegetais, a copiar um
delicioso texto do Manuel S. Fonseca na sua Página Negra:
«Olhos vegan espreitam-nos
a cada esquina, tremendas máquinas de olfacto perseguem o aroma de um Partagas
série D n.º 4, príncipe dos havanos. São olhos vigilantes: perseguem cada
garfada, cada copo ou cálice. Trocaram a velha treta da exploração do homem pelo
homem, pela marcação homem a homem. Há um exército de conspícuos e virtuosos
especialistas prontos a proibir, prontos a culpar-nos pela boca, narinas,
palavras, desejos e mesmo omissões. Estão prontos a pendurar o último
hedonista, pela língua, nos pelourinhos da Imprensa e das redes sociais. Em
ataque às gorduras, molhos, carnes, aos vinhos que o poeta persa cantou, ouçam
essas vozes mansas, todas derretidas em inflexões angélicas, a culparem-nos,
prometendo-nos estágios num purgatório de onde só se sai para o inferno.
Impele-as o terrorismo de um bárbaro bem-estar.
A darmos ouvidos, melhor
será dar ouvidos ao passado. Mesmo o naturalíssimo bom selvagem que talvez
houvesse em Rousseau nos avisou: “Sempre notei que as pessoas falsas são
sóbrias e a grande reserva à mesa anuncia muitas vezes virtudes fingidas e
almas dúplices.” Uma variada mesa à sua frente e nela a estética natureza morta
de vinhos, peixe e carne, outro filósofo, um deliciado Voltaire, põe-me estas
palavras na boca: “Escolhi ser feliz, porque é bom para a saúde.»
Sou um fóssil antiquíssimo
agarrado às paredes da Terra. Naufragado no miolo do mar. Só percebi a minha
condição quando cheguei a esta praia, quando deixei de me preocupar com a vida
que tenho e tive desde o dia do meu nascimento; só deixei de me preocupar com a
vida e com a morte quando estes pés calcaram pela primeira vez o areão grosso e
os meus olhos viram, se abriram e viram, e perceberam o peso das nuvens junto à
sua água primitiva. Complicado.
Siu um fóssil antiquíssimo
agarrado para sempre à rocha, destas que existem por aqui. Qualquer pessoa as
pode ver e apreciara. Têm formas esquisitas a despontar das águas quase paradas
desta praia onde a solidão é a perder de vista.
É isso que sou. Um fóssil
de líquen.
E um fóssil, à primeira
vista, não tem muito que se lhe diga.
No Teatro Virgínia, em Torres Novas, no dia 21 de Dezembro, num
espectáculo inicialmente anunciado como celebração de 50 anos de carreira, mas
que o músico, veio a revelar ter siso o da sua despedida dos palcos, Pedro
Barroso declarou que não abandona a intervenção crítica, nem a cidadania,
enquanto o último neurónio o permitir.
Na contracapa do álbum Do Lado de Cá de Mim, o crítico Viriato
Teles escrevia que o Pedro Barroso não era o melhor cantor do mundo, mas um
cultivador de cantigas simples, fadigas sem conta, reflexo de um tempo e de um
espaço bem definidos, fazendo o que se pode, como se pode.
Pedro Barroso gravou com Patxi Andión a canção «Rumos» que será
incluída no CD «Novembro» a publicar brevemente.
Patxi Andión, no dia 18 de Dezembro, morreu num estúpido despiste de
automóvel na província de Soria.
Tanto Pedro Barroso como Patxi Andión foram revelados ao público
português, no ano de 1969, através do programa Zip-Zip.
Sempre que me apanho no meio deste tempo de Natal, não esqueço o Imenso
Adeus e lá estou a beber dois gins, um por ti, outro por mim, mais alguns
para o caminho.
Mas Mário, o Natal está cada vez menos Natal, antes um amontoado de
confusões, de gasto exagerado de dinheiro, que a grande maioria mão tem mas teima
em gastar, tu que tanto te fartaste de dizer que gostavas do natal e a tal
Dietlinde, quando pediu o divórcio, acabou por ficar com os teus discos
de Natal, muitas outras coisas, algumas irreversíveis. O que deu bem – deu,
mesmo? - foi o apaixonares-te loucamente, pela advogada da tua mulher. Outro grande amor das muitas tuas
vidas que acabaram por contribuir para o fim da tua atormentada, mas bem
gozada, vida.
Voltei a mandar uma carta ao venerando sacripanta de barbas e casacão
vermelho, com posto de correio em Rovaniemi, lá para o Circulo Polar Árctico,
plena Lapónia onde, dizem, os dias são azuis, que me colocasse, no cantinho
esquerdo da chaminé, uma garrafa de verdadeira água tónica para que pudesse beber
o perfeito gin-tonic. Não é pedir a lua, apenas uma garrafinha de tónica aquela
que tem quinino e não hidrocloreto de quinino.
Mas nada!, queridíssimo Mário-Henrique Leiria, e o que é certo é que
essa tal tónica com quinino, empresta ao gin um sabor único, um sabor de paraíso.
De fazer inveja aos deuses.
De resto, há alguns anos o gin entrou na moda mas pelas piores razões.
Já quase ninguém frequenta o clássico gin tónico, rodela de limão, gelo e
tónica, antes se uma snobice, uma parvoeira sem nome, e metem-lhe flores,
pimentas, uma parafernália de especiarias e até já me falaram em que há por aí gelatina
de gin e eu fico espantado e arrepiado.
Morreu Anna Karina, actriz
de Godard, protagonista de “Pedro, o Louco”, o mais belo dos filmes. Não há
ninguém da minha geração, e das gerações que se seguiram, que não se tenha
apaixonado por ela.
«O sonho define a
personagem», escreveu Shakespeare, e não há homem algum que não saiba que ele
tem razão. A nossa esperança reflete-nos. Quem nos quiser conhecer
profundamente, aceite ouvir-nos falar daquilo que esperamos.
Amiúde é costume ver pelas paredes da cidade apelos deixados
por pessoas que viram desaparecer de casa os seus animais de estimação. A tristeza
que sentimos saídas dessas mensagens.
Mas aqui olhamos o apelo de uma criança que perdeu o
seu peluche, um peluche cinzento.
E foi assim que se passou.
Cinco meses depois da morte de Drenka, não foi preciso mais nada para ele
desaparecer, deixar Roseanna, encontrar finalmente forças para deixar o lar de
ambos, na medida em que assim se lhe podia chamar, meter-se no carro e partir
para Nova Iorque para ver qual era o aspeto de Linc Gelman.
A fatia grossa da vida profissional cumpriu-a trabalhando numa
companhia de navegação ali, privilégio dos privilégios, em pleno Cais do Sodré.
Pelo Natal, havia a azáfama de adquirir as prendas para oferecer aos
clientes, um mundo exótico repleto de surpresas e surpresazinhas, um manancial
de grandes histórias… também algumas chatices…
As empresas que prestavam serviços também obsequiavam directores e
trabalhadores com lembranças natalícias.
As que lhe foram concedidas, eram garrafas de vinho reserva, ele que
sempre apreciou colheitas do ano, também garrafas de whisky, que nunca
constituíram gosto seu, e jamais uma garrafa de gin, que sim, calhava bem,
estava mais de acordo com o perfil que formou e guarda ainda hoje.
Por um Natal, a capitalíssima MAERSK, companhia de navegação, também
companhia de aluguer de contentores, ofereceu um CD com canções de Natal,
nenhuma que estivesse em falta nas centenas e centenas de canções e músicas de
Natal que há longos e longos anos esvoaçam pela casa.
O Natal será sempre o encanto e a ternura da impossibilidade. O sem
sentido de alguns presentes, como naquele conto de O’ Henry: ela vendeu o lindo
e comprido cabelo para lhe comprar uma corrente, de que ele tanto gostava; ele
empenhara o relógio para lhe comprar as travessas, de que ela tanto gostava,
para por no cabelo.
Se falou em histórias, lembra uma:
O Matos, angariador de carga em contentores de e para Roterdão, porto
de trânsito para o resto do mundo, tinha como um dos clientes uma empresa em
que Raquel era a responsável de import/export.
Boas conversas, não só sobre transportes mas outras e variadas.
Naquele Natal o Matos disse ao chefe que queria ser ele a levar a prenda
de Natal à Raquel. A excelência está muitas vezes bem escondida entre o resto,
requer um olhar que não se deixe distrair, ou que não o queira fazer. Marcaram
jantarada e não passou muito tempo que não marcassem casório.
A vida não é bem como nos filmes americanos e a Raquel e o Matos, nem
sequer chegaram ao contexto do seven-year itch.
O Natal, as prendas, constroem novelos que se não se desenrolam facilmente.
A luz formava um padrão estranho,
de riscas horizontais e tonalidade rosa, e produzia uma sensação de
irrealidade, semelhante à que experimentamos quando, submersos, abrimos os
olhos e olhamos para o céu, Ondulava e escorri, numa desfocagem constante e
hipnótica, composta de fantasia e de sonho.
Ele baixou os olhos e
corou
e toda a gente julgou...
que quem fez a maldade foi Jesus .
E todos Lhe perdoaram ...
- Obrigado, Menino ! Mas agora
tira os olhos do bebé e vem brincar,
que eu prometo pra não Te ver corar,
já não fazer das minhas .
Anda jogar ao pé das flores, no chão,
comigo às cinco pedrinhas ...
anda jogar pra esqueceres
o preço do meu perdão ...
A árvore de Natal do Café Império. Por este tempo de Natal, o bife do Império é um clássico que cumprimos há uns bons anos. Dizem pelas esquinas do bairro, que a casa passa por algumas dificuldades. É provável, mas o bife continua a manter o sabor de outros tempos. Clássico da época, é também a visita, no último dia do ano, ao Beira-Gare para as bifanas a transbordar molho por todos os lados do pão. Mas isso já são histórias para o Sammy.
Envolviam-se em mantas e
rojavam
Os pesados bordões
Pelas ruelas do burgo desgastado
Por cismas e claustrais melancolias,
Sobressaltado
De evocações,
Oscilando no mar das ventanias,
Envolviam-se em mantas e cantavam...
Que gélidas, atrozes,
As noites desse Inverno! Entanto,
O bando
Dos cantadores, pelas ruelas divagando,
Prosseguia em seu canto!
Cálidas rescendências
Cresciam do florir das densas vozes,
Dessas vozes de tardas ressonâncias,
Extinguindo-se ao largo, nas distâncias,
Em hálitos de luz, em transcendentes,
Incertas refulgências
De auréolas de nascentes e poentes...
Era um coro que vinha, gemebundo,
Das almas, do profundo
De tudo o que há de humano,
Remontando-se a místicas Moradas,
Embebidas em sonho imorredoiro,
A cimos relumbrantes como brasas,
E, regressando, enfim, das extasiadas
Romagens do seu voo soberano,
Em um desmaio de oiro,
- Plenas de glória, as asas! –
Cavadores, ganhões, heróis da gleba,
Dos páramos de Beja,
Lá onde, sempre a errar, minha alma adeja,
Emergiam, fantásticos, da treva,
Erguendo cantos, como a erguer troféus...
Eram esses que enlaçam
A Terra aos Céus,
Nos coros que de assombros nos trespassam,
Longe de si - presentes só em Deus!
Cantavam ao Divino!
Cantavam, arroubados de Harmonia,
Àquela Nova Estrela que nascia;
Ao Deus-Menino,
Que, embalado nas vozes, lhes sorria!
Junto à paragem do autocarro 730, na Rua Forno do Tijolo, alguém colou
este azulejo na parede.
Uma angústia e um desespero sem fim, levaram-no a escrever esta
mensagem.
Comprou o azulejo, desenhou a letra.
Não revela o nome do senhorio, não assina o texto, apenas um grito que
alguém escute, ele que ficou sem casa e apenas sabe isso.
As palavras falam por si.
Senhorios, empresários, banqueiros, a nata da nossa sociedade que,
durante anos faziam jantares sumptuosos no Beato para tratar das suas
negociatas, arrotando nos finalmente que este país não ia para a frente por
causa da corja dos trabalhadores.
Eis do que Byron Bunch se
recorda: Foi há três anos numa sexta-feira de manhã. Os homens, na secção de
aplainamento, levantaram os olhos e viram um desconhecido, de pé, que os
olhava. Não sabiam há quanto tempo ali estava. Tinha o aspecto de um vagabundo,
e no entanto, não era exactamente como um vagabundo. Tinha os sapatos cheios de
poeira e as calças também estavam sujas. Mas eram de uma sarja decente e bem
vincadas; a camisa estava porca, embora fosse uma camisa branca, e trazia
gravata e chapéu de palha quase novo, que usava de banda, num jeito arrogante,
sobre o rosto impassível. Não tinha o ar de vagabundo profissional com os seus
andrajos profissionais, mas parecia um ser sem raízes, como se não pertencesse
a nenhuma cidade, como se não houvesse uma rua, uma parede, um bocado de terra
que lhe fosse familiar. Apenas levava consigo a sua sabedoria, como se
transportasse um estandarte, com seu quê de bravata, de solidão e até de
altivez. «Era como se estivesse passando um mau bocado que esperava ver acabado
depressa, sem se importar saber de que nunca se sairia dele», disseram os
homens mais tarde. Era novo. E Byron observava-o: de pé, um cigarro ao canto da
boca, cabeça um pouco inclinada por causa do fumo, olhando com uma expressão de
sombria calma desdenhosa os homens de fatos-macaco manchados de suor. Ao fim de
algum tempo, cuspiu a beata, sem a agarrar com a mão, e, dando meia volta,
dirigiu-se para o escritório da serraria. Os homens dos fatos-macaco desbotados
e sujos olhavam-no pelas costas com uma expressão indignada e perpelexa.
«Devíamos passa-lo à plaina – diz o contra-mestre – talvez lhe tirássemos o
aspecto que tem».