Morreu Ruben de
Carvalho.
Uma boa parte
dos portugueses talvez não consiga saber o que, com a sua morte, o País perde.
Pedro Tadeu, no Diário
de Notícias-on line de hoje, num texto que intitulou «Olá Ruben. Como é
a minha vida hoje?...:
«Milhares de vezes, quando aquele número aparecia no
mostrador do meu telemóvel, soava no auscultador a voz do Ruben de Carvalho:
"Olá Pedro, estás bom?... Olha lá, como é a tua vida hoje?".
Por causa dos telefonemas do Ruben, desde que o
conheci, em 1983, a minha vida profissional incluiu o jornal
"Avante!", a Festa do "Avante!", a Telefonia de Lisboa, o
Lisboa 94, e lembro-me lá agora de tantas outras coisas que fiz com ele, de
tantas outras coisas que fiz para ele, de tantas outras coisas que fiz por
causa dele. Ruben de Carvalho foi meu chefe
Por causa dos telefonemas do Ruben, tive milhares de
horas de conversa, milhares de jantares, milhares de discussões sobre política,
história, sociologia, arte, música, relações humanas. Ruben de Carvalho foi meu
mestre.
Por causa dos telefonemas do Ruben fui obrigado a
estudar livros que ignorava, a ouvir discos que subestimava, a saber duvidar de
certezas absolutas, a procurar questionar as minhas convicções para encontrar
boas respostas sobre novos problemas, a recusar dogmas e lugares-comuns mas, ao
mesmo tempo, a respeitar os milhares de anos de saber acumulado pela
humanidade. Ruben de Carvalho ensinou-me a pensar.
Por causa dos telefonemas do Ruben conheci de perto
dezenas de pessoas extraordinárias: a incrível companheira dele, a jurista
Madalena Santos (que, aliás, nos apresentou); a Ivone Dias Lourenço; o grafista
e desenhador José Araújo; o músico, musicólogo e realizador de TV e rádio,
Manuel Jorge Veloso; os jornalistas João Chasqueira, Anabela Fino, Carlos
Nabais, Domingos Mealha, Henrique Custódio e Leandro Martins; a Noémia; o
apresentador Cândido Mota, o locutor Mário Dias...
Ruben de Carvalho foi ponto central e completou a
circunferência do meu círculo de relações pessoais. Ruben de Carvalho foi meu
amigo.
Contactei com importantes dirigentes comunistas que me
impressionaram: António Dias Lourenço, Carlos Brito, Domingos Abrantes, Carlos
Carvalhas e, claro, Álvaro Cunhal. Ruben de Carvalho foi meu camarada.
A biografia do Ruben é impressionante.
Foi militante comunista, logo durante a ditadura
fascista, antes do 25 de abril; conspirou e lutou contra o regime.
Esteve nos movimentos unitários, da candidatura
presidencial de Humberto Delgado às candidaturas eleitorais da CDE; esteve no
apoio ao aparelho clandestino do PCP.
Foi preso político seis vezes.
Foi um jovem jornalista que chegou precocemente a
subchefe de redação de um grande jornal diário, o "Século".
Fez a guerra colonial em Angola como enfermeiro,
decidindo não dar "o salto" para o estrangeiro, mas encontrando uma
forma de estar no exército português que não violentasse a sua solidariedade
com os movimentos de libertação.
Fez a revista "Vida Mundial", que abriu uma
janela de luz na informação opaca da época.
Foi chefe de gabinete de um ministro no primeiro
governo da democracia.
Fez a primeira redação legal do "Avante!".
Até construiu mobiliário, pois adorava o trabalho manual - não era acaso o
brinquedo preferido em criança ter sido o das construções em Meccano.
Esteve no centro da criação da "Carvalhesa",
o hino sem letra que tantos trauteiam nas campanhas eleitorais da CDU.
Fez, desde 1976 até hoje, a organização dos
espetáculos da Festa do "Avante!".
Fez uma rádio local chamada Telefonia de Lisboa que o
cavaquismo, assustado, fechou ilegalmente, como o tribunal administrativo veio
a confirmar numa sentença tardia sobre um concurso para novas frequências de
rádios.
Fez parte do comissariado do Lisboa 94, Capital
Europeia da Cultura - e isso fez dele, contava com ironia, um dos comendadores
da nação, com direito a medalha e tudo.
Fez trabalho parlamentar como deputado eleito por
Setúbal.
Foi um vereador empenhado na câmara de Lisboa.
Escreveu, publicou e ajudou a editar várias obras de
referência sobre o fado. Lutou muito contra a ideia de que o fado era uma
música "salazarenta", como alguma esquerda, mais tonta, logo a seguir
à Revolução dos Cravos, crismara o género popular.
Esteve sempre no centro do debate político; publicou
milhares de artigos de jornal na "A Capital", "Diário de
Notícias", "Público", "Expresso", "Sábado",
"24horas", entre outros.
Foi comentador regular na SIC e na RTP.
Fez dois programas na Antena 1 que se tornaram
referência na rádio portuguesa e demonstram publicamente a sua personalidade
culta, pluralista e tolerante: com Iolanda Ferreira o "Crónicas da Idade
Mídia"; com Rui Pego e Jaime Nogueira Pinto, o "Radicais
Livres".
Fazer, construir, deixar obra feita num contexto de
trabalho coletivo - este era o seu projeto pessoal.
É nesse sentido que deveríamos entender o seu maior
legado: o da Festa do "Avante!".
A própria ideia inicial da organização da Festa,
inspirada em festas similares de partidos comunistas, como o italiano e o
francês, tinha como pressuposto o envolvimento coletivo de milhares de
militantes comunistas na organização de um projeto político e cultural que
demonstrasse, numa pequena cidade improvisada, o modelo de sociedade
igualitária que o PCP defende. A Festa não é, portanto, obra de um indivíduo, é
obra de um coletivo.
Com o engenheiro Fernando Vicente e o artista plástico
Rogério Ribeiro, o Ruben moldou a forma técnica e estética inicial que milhares
de camaradas seus desenvolveram, fizeram evoluir e construíram em vários
terrenos e espaços, desde os pavilhões da antiga FIL, na rua da Junqueira, à
atual Quinta da Atalaia, no Seixal.
A organização dos espetáculos, a sua tarefa central na
Festa do "Avante!", suscitou-me há alguns anos estas palavras:
"Com ele aprendi ser sempre mais difícil decidir
quem atua a meio da tarde do que escolher quem encerra a noite. Vi como era
preciso ter coragem para dizer não a músicos ligados ao PCP, que caíam na
tentação de querer transformar a festa de todos numa coutada exclusiva.
"Aprendi como se fabricam as grandes ideias e as
dezenas de horas de discussão redonda, esgotantes, que é preciso ter para lá
chegar. Vi como surgiram os filões das músicas brasileiras, folk ou africana,
sempre um pouco à frente das modas em que elas depois se transformaram, e
registei como aconteceu a que agora é marca definitiva do evento: o grande
concerto de música clássica.
"Na Festa do Avante! ensinaram-me, como a muitos
outros, o essencial do que me transformou num profissional bem-sucedido: é
preciso entender o quadro geral de um problema e dar importância aos detalhes
que fazem a diferença".
A Festa do "Avante!" é também relevante
porque criou uma indústria: foi lá que se formou a primeira geração de técnicos
e de produtores que tornaram os concertos e festivais de verão uma banalidade,
que antes não existia em Portugal.
O Ruben foi sempre um intelectual ao serviço da classe
operária. Era um génio que não acreditava nos golpes de génio, que acreditava
cegamente no trabalho de equipa.
Há uma dezena de anos estivemos cerca de 20 minutos
chateados.
Num fim de semana que passámos juntos, discutíamos as
mudanças no mundo da comunicação que a internet trouxe. Às tantas fiz uma
catilinária sobre a "burrice" da esquerda que deixava para a direita
e para o PS o domínio ideológico dos "blogues" e das redes sociais.
Ele, zangado (ui!, como era bravo...), espantava-se comigo: como é que eu,
militante comunista, defendia a utilização de uma forma de comunicação que,
pela sua natureza atomizada, promove o individualismo, o egocentrismo, a
vaidade pessoal, o desprezo pelo outro? "Vamos mas é fazer bons sites
coletivos, deixa lá isso dos blogues e dos Facebooks que isso é para quem tem a
mania de ser vedeta..."
Ruben de Carvalho era um intelectual ao serviço da
classe operária. Um revolucionário. Foi essa a missão que cumpriu na vida.
Olho para o telefone, depois de receber a notícia da
morte do Ruben de Carvalho, o homem mais impressionante que conheci.
Não evito a comoção e pergunto-me: sem Ruben, como é a
minha vida hoje?...
Um grande beijo, Madalena.