«Se compreendi bem todas as notícias que li sobre a degradação do Serviço Nacional de Saúde, uma onda que desta vez começou por causa do colapso de algumas urgências de obstetrícia, a conclusão a tirar é que... não há notícia.
Não é notícia a falta de médicos e de enfermeiros, cada vez mais grave,
no Serviço Nacional de Saúde.
Quem não se lembra da promessa de António Costa, em 2016, de garantir
um médico de família para todos os portugueses? Essa promessa pressuponha que
faltavam médicos no sistema, o que era verdade, e que Costa ia resolver o
problema, o que seria mentira, pois ele, entretanto, agravou-se.
Não é notícia a fuga de profissionais de saúde do serviço público, seja
para o estrangeiro (quando isso é possível), seja para o setor privado, que se
expande cada vez mais.
Ainda agora, só para exemplificar, deram mais uma medalha ao enfermeiro
português, um dos que decidira emigrar, que tratou a covid-19 de Boris Johnson.
Não é notícia a evidente suborçamentação do Ministério da Saúde, que o
impede de resolver os problemas de vez. Uma das razões da queda da
"geringonça" foi, precisamente, essa.
Não é notícia a crónica falta de dinheiro para o serviço público de
Saúde, é um assunto com décadas, foi uma política comum a vários governos que,
aliás, subsidiaram, simultaneamente, indiretamente, o crescimento do setor
privado de várias maneiras, a começar pelas Parcerias-Público-Privadas e a
passar por frequentes benefícios fiscais, para indivíduos e para empresas,
dados a quem subscrevesse seguros de saúde, sustentando assim um início de
crescimento, que era difícil, para os hospitais e as clínicas privadas,.
Não é notícia aparecer todos os anos o conjunto habitual de cromos
político-corporativos a defender que a solução não está em colocar mais
dinheiro no Serviço Nacional de Saúde, em pagar decentemente a médicos e
enfermeiros para eles não se irem embora, em fixar mais profissionais no
quadro.
Não, para esses profetas das consultas universais a 100 euros a solução
é dar dinheiro às empresas privadas de saúde para elas fazerem o mesmo serviço.
De resto, a prática já é frequente, embora na sombra: vários sindicatos
estão há anos a denunciar o recurso crescente a empresas de prestação de
serviços, através das quais há médicos a receber mais por hora do que os
clínicos dos quadros do Estado!
Não é notícia a incompetência, desleixo ou intenção de governar mal o
Serviço Nacional de Saúde, que dá cada vez mais argumentos a quem defende a sua
entrega para os privados - chegámos ao ponto de, a partir de 2006, mandarmos
bebés portugueses, de mães que vivem na fronteira alentejana, nascerem em
território estrangeiro, a Badajoz!
Não é notícia a acusação de "preconceito ideológico" feita
sobre todos os que não concordam com a doação do Serviço Nacional de Saúde às
empresas privadas. O papão de "o comunismo é a culpa disto tudo" é
usado em Portugal há pelo menos 101 anos.
O problema não é ideológico, a não ser que achemos que, no que diz
respeito à saúde, todos os portugueses não devem ter o mesmo direito de acesso
a serviços de qualidade equivalente e que, também aí, o mundo tenha de se
dividir entre ricos e pobres.
O problema é que a partir do momento em que se monte um sistema onde,
generalizadamente, o Estado passa a pagar a privados ou ao setor social o
fornecimento de um serviço de saúde universal e tendencialmente gratuito, perde
uma estrutura que depois não será capaz de remontar. Se, ao fim de uns anos,
com o SNS estatal praticamente desmontado, com a legislação entretanto
produzida a defender, inevitavelmente, os interesses dessas empresas, elas
disserem ao governo, "o contrato que temos não presta, queremos cobrar mais
ou vamos embora", o governo não tem outro remédio que não seja aceitar a
fatura, seja qual for o preço a pagar, ou então deixar os portugueses mais
pobres ao Deus dará.
Não tenhamos ilusões: veja-se o que se passa por esse mundo fora
(Portugal, o que é incrível, ainda é dos melhorzinhos em Serviços de Saúde) ou
o escândalo global dos preços dos medicamentos, para se perceber o espírito que
impera nestes negócios da doença.
Se uma notícia pressupõe a existência de uma novidade, de uma
informação nova que não conhecíamos, então a minha conclusão inicial estava
certa e este debate é um "dejá vu",
é "old news".
Respondo, por isso, para se perceber o que pode vir aí se não salvarmos
o verdadeiro Serviço Nacional de Saúde, com o título de outra velha notícia, de
28 de outubro de 2020: Hospitais
privados sem disponibilidade para receber doentes covid-19 em Lisboa.
Pedro Tadeu no Diário de Notícias de ontem
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