quinta-feira, 30 de junho de 2022

OLHAR AS CAPAS


Crónica dos Bons Malandros

Mário Zambujal

Capa: José Cândido

Livraria Bertrand, Lisboa, Maio de 1980

«Profissão?»

As duas mulheres trocaram olhares, a mais velha e gorda deu um passo em frente como se quisesse ir entregar a resposta em mão. Entregou, baixinho:

 «Putas...»

O subchefe da Polícia fez uma careta de desagrado, abanou tristemente a cabeça e censurou: “Então isso diz-se assim?” A mulher, a mais velha e gorda, não compreendeu que diabo queria o subchefe da Polícia, ficou calada, a pensar, pensou que talvez não tivesse sido respeitosa o suficiente. Emendou: “Putas, senhor subchefe.” O subchefe da Polícia ficou em silêncio, só levantou os olhos e os braços ao céu a pedir a ajuda ao Altíssimo. Não tinha nascido para aquela vida, era homem de esmerada educação, frequência de seminário, muita teologiazinha, mas também romances policiais, às escondidas, sua paixão e seu pecado, Agatha Christie contra Nossa Senhora, Ellery Queen a puxá-lo dos braços de S. José, ele um menino que fugia do presépio, adeus seminário. Trocou a roupa negra de futuro pastor pela farda cinzenta da corporação - azul nos feriados -, o crucifixo pelo pistolão, o rosário pelo cassetête, o missal pelo livro de registo dos que iam entrando no xelindró. Foi uma opção que o fez sofrer. Longo tempo levou a sossegar a consciência, explicando a si próprio que era também uma forma de combater o pecado, havia antecedentes, a História cheia deles, o Santo Condestável, os cruzados, e outros, tantos, o importante era estar do lado justo e bom.

Mas agora o subchefe estava cansado, havia muita fadiga e desânimo na sua voz ao recomendar à detida uma linguagem menos feia de ouvir:

 «Meretrizes, queria a senhora dizer...»

«Pois sim, senhor subchefe, também pode ser isso. Meretrizes.»

«Nomes?»

A meretriz abriu a mala preta de plástico, remexeu em chaves e papéis, tirou um documento e foi depositá-lo sobre a secretária do subchefe da Polícia.

«Ora aí tem. Evelina de Sousa, mais conhecida por Lina Despachada, ao seu dispor. É uma forma de dizer, está claro. Quarenta e quatro anos feitos em Fevereiro, podia ser mãe do senhor subchefe, com o devido respeito. Aqui a minha amiga está muito aflita, o senhor subchefe há-de desculpar, a miúda é nova nisto, tem dezoito anos só. Olha, agora está a chorar, cala-te lá ó garota, não morreu ninguém. É a Adelaide, senhor subchefe, uma joinha, coitada, andava para aí aos tombos, fui eu quem lhe deu a mão, temos de ser uns para os outros.»

Voltou-se para acalmar os soluços assustados da amiga, enquanto o subchefe da Polícia, com um gesto de esferográfica, chamava um guarda de serviço.

«Manda entrar os queixosos.»

Tinha havido uma queixa. Dois cidadãos, pessoas de respeito, como muito bem se verificava no trajar e nos documentos exibidos, haviam solicitado à autoridade a detenção das duas mulheres “às vinte e três e trinta e cinco do dia 9 de Março, no Campo dos Mártires da Pátria, sob a acusação de lhes terem furtado, dois dias antes, 7 de Março, um alfinete de gravata e um isqueiro, tudo avaliado em seiscentos e cinquenta escudos”, assim rezava o relatório.

«Foram elas! », afirmaram, peremptórios, os dois, sem dúvida nenhuma. O subchefe da Polícia fitou as presas e ficou à espera. Então, Lina Despachada voltou a abrir a mala preta de plástico, tirou um alfinete e um isqueiro, mostrou-os bem na mão espalmada e desafiou:

«São estes?»

Aparvalhados, os queixosos mais não fizeram do que sim com as cabeças e já a acusada se virara para o subchefe da Polícia, cada vez mais desgostado da cruzada que escolhera na vida.

1 comentário:

Seve disse...

Bom livro, capa nem por isso!