terça-feira, 21 de junho de 2022

O OUTRO LADO DAS CAPAS

Logo nas primeiras palavras do longo e excelente prefácio de João Pedro George, lê-se

«Luiz Pacheco sofria de compulsão epistolar.»

Sou um velho  apreciador de correspondência entre escritores.

Acresce que em tempos idos, enquanto subia/descia o Chiado, fiz parte daqueles a quem o Pacheco esticava um livreco e dizia: «Dá cá vintes!»

Mais tarde entrei na longa lista de assinantes da Contraponto para bebeficiar do envio das edições de livros que o Pacheco fazia e que não chegavam às livrarias.

Se tiverem paciência para isso, vejam nas etiquetas deste blogue: «Luiz Pacheco» e «Luiz Pacheco Editor», as minhas aventuras com a pachecal figura.

Num velho artigo no suplemento Ipsilon do Público, Luís Miguel Queirós conta quem é Laureano Barros:

 «Grande bibliófilo, matemático e intelectual anti-fascista Laureano Barros (1921-2008), que reuniu na sua quinta da Fonte da Cova uma das mais extraordinárias bibliotecas privadas portuguesas da segunda metade do século XX.

 Quem frequentou os velhos alfarrabistas do Porto, alguns ainda em actividade, sabe que se referiam sempre a Laureano Barros com um respeito muito próximo da veneração. E não apenas por ser um proveitoso cliente, mas porque lhe reconheciam um vastíssimo saber na sua própria área de especialidade, consultando-o a pretexto de dúvidas bibliográficas, ou pedindo-lhe até que lhes recomendasse o preço adequado a pagar por qualquer raridade que lhes era proposta. E admiravam-lhe também essa intransigente rectidão moral que, logo aos 26 anos, em 1947, o lançou no desemprego. Assistente de Ruy Luís Gomes, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, protestou contra a prisão de uma aluna pela PIDE, o que bastou para ser impedido de leccionar no ensino público. Viveu os 20 anos seguintes a dar explicações, com alguma contribuição paterna a arredondar os proventos, já então maioritariamente investidos na aquisição de livros.

A sua biblioteca, leiloada após a sua morte pela Livraria Manuel Ferreira, era tão extensa e tão valiosa que foi preciso organizar um leilão em três partes, com meses de intervalo entre elas. Laureano Barros era um coleccionador exaustivo de Pessoa ou Sá-Carneiro, mas também, por exemplo, de Eugénio de Andrade, Luiz Pacheco ou Herberto Helder. E este seu particular interesse pela literatura portuguesa do século XX convivia com outras predilecções, entre as quais se contava a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, da qual conseguiu reunir todas as dez primeiras edições.

É claro que é preciso algum dinheiro para construir uma biblioteca deste nível, e Laureano Barros tinha até reputação de manter alguns hábitos não apenas dispendiosos, mas um pouco excêntricos, como o de levar regularmente os trabalhadores da quinta a almoçar ao reputado restaurante do Hotel do Elevador, no Bom Jesus de Braga. Mas o coleccionador também teve períodos difíceis. Num dos mais interessantes testemunhos recolhidos por Paulo Pinto no seu filme, o histórico livreiro da Académica, Nuno Canavez, então ainda empregado do fundador da casa, Joaquim Guedes da Silva, recorda que Laureano Barros recorreu a dada altura ao seu patrão para vender a biblioteca que por essa altura já reunira. O livreiro ainda tentou, em vão, emprestar-lhe dinheiro, mas acabou mesmo por lhe comprar a colecção. Ou seja, a biblioteca que veio a ser leiloada era já a segunda.»

 O matemático bibliófilo foi também amigo e correspondente de vários escritores, incluindo Luiz Pacheco ou Eugénio de Andrade, que passava temporadas regulares na quinta da Fonte da Cova. Em Laureano Barros, Rigoroso Refúgio vê-se o exemplar que o poeta ofereceu ao amigo do seu raríssimo (e rejeitadíssimo) livro de estreia, Narciso (1940). No final do volume, Eugénio escreve: “Reli isto, Laureano. Que horror! Para que diabo quer você esta porcaria?”. Quando a biblioteca foi leiloada, este mesmo exemplar foi arrematado por quatro mil euros.

Pena que  «O Grilo na Varanda» não reúna a parte da correspondência que Laureano Barros enviava a Luiz Pacheco  «escritor até aos ossos» tal como o descreve João Pedro George:

E, no entanto, apesar das óbvias diferenças, a correspondência revela a consideração de Pacheco por Laureano Barros, uma estima que se pressupõe mútua. “Pressupõe”, porque as cartas aqui apresentadas são apenas as que Pacheco escreveu a Laureano; e nem mesmo essas são todas as que haverá, como adverte JPG. As cartas que acabam de ser editadas foram arrematadas no leilão portuense, e foi apenas a essas que JPG teve acesso.

A aproximação entre ambos deu-se pela bibliofilia de Laureano, que contactou Pacheco em busca de espécimes bibliográficos da Contraponto e de Pacheco. Muita da correspondência que se seguiu, ao longo de 35 anos, versaria, naturalmente, sobre edições levadas a cabo por Luiz Pacheco. Mecenas tão discreto quanto fiável, Laureano financia empreitadas editoriais e salva bastas vezes Pacheco dos seus infindáveis padecimentos de saúde, da falta de fundos e de todo um sortido crescente de tribulações: com a justiça, com credores, com a vida que lhe ia acontecendo.»

Legenda: contra capa de O Grilo Falante

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