Um escritor que se preza, a si e aos seus leitores,
sabe que não vem do nada e José Saramago sabia que o ficava por saber, tinha os
contornos do infinito.
Na Biblioteca
Nacional inaugura-se hoje a exposição «A
Oficina de Saramago», que estará aberta até ao dia 8 de Outubro.
A exposição insere-se
nas diversas comemorações do centenário do nascimento de José Saramago.
Apresenta uma mostra bibliográfica e documental que celebra o percurso de escrita de Saramago e estão organizados em três grandes eixos, que dão a conhecer as várias bibliotecas relacionadas com o universo escritural do autor: aquela que antecede ou que alimenta a obra (eixo A oficina e a invenção do escritor), a da obra em si (segundo eixo) e aquela que se lhe seguiu (eixo A receção e a consagração).
No topo, uma página emendada do documento dactilografado do início de O
Ano da Morte de Ricardo Reis:
«Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm turvas de barro, há cheia nas lezírias. Um barco escuro sobe o fluxo soturno, é o Highland Brigade que vem atracar ao cais de Alcântara. O vapor é inglês, da Mala Real, usam-no para atravessar o Atlântico, entre Londres e Buenos Aires, como uma lançadeira nos caminhos do mar, para lá, para cá, escalando sempre os mesmos portos, La Plata, Montevideo, Santos, Rio de Janeiro, Pernambuco, Las Palmas, por esta ou inversa ordem, e, se não naufragar na viagem, ainda tocará em Vigo e Boilogne-sur-Mer, enfim entrará o Tamisa como agora vai entrando o Tejo, qual dos rios o maior, qual aldeia. Não é grande embarcação, desloca catorze mil toneladas, mas aguenta bem o mar, como outras vezes se provou nesta travessia, em que, apesar do mau tempo constante, só os aprendizes de viajante oceânico enjoaram, ou os que, mais veteranos, padecem de incurável delicadeza do estômago, e, por ser tão caseiro e confortável nos arranjos interiores, foi-lhe dado, carinhosamente, como ao Highland Monarch, seu irmão gémeo, o intimo apelativo de vapor de família. Ambos estão providos de tombadilhos espaçosos para sport e banhos de sol, pode-se jogar, por exemplo, o cricket, que, sendo jogo de campo, também é exercitável sobre as ondas do mar, deste modo se demonstrando que ao império britânico nada é impossível, assim seja a vontade de quem lá manda. Em dias de amena meteorologia, o Highland Brigade é jardim de crianças e paraíso de velhos, porém não hoje, que está chovendo e não iremos ter outra tarde. Por trás dos vidros embaciados de sal, os meninos espreitam a cidade cinzenta, urbe rasa sobre colinas, como se só de casas térreas construída, por acaso além de um zimbório alto, uma empresa mais esforçada, um vulto que parece ruína de castelo, salvo se tudo isto é ilusão, quimera miragem criada pela movediça cortina das águas que descem do céu fechado.»
A exposição tem curadoria de Carlos Reis e Sara Grünhagen, pesquisa
arquivística. O catálogo da exposição foi publicado pela Imprensa Nacional-Casa
da Moeda.
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