terça-feira, 27 de outubro de 2015

SARAMAGUEANDO



Vou sentindo algumas dificuldades com alguns novos autores.

Fico sempre com a sensação de que os livros não foram escritos para mim ou, o mais certo, não tenho unhas para a guitarra.

Quando falo de novos autores, obviamente falo de quem publica livros e não tralha.

A idade traz-nos o prazer da releitura.

Assim passo os dias.

O cronista Nelson Rodrigues chegou a dizer deve ler-se pouco e reler muito.

O gosto das releituras reside, essencialmente no encontrar de ideias e palavras que nos escaparam numa primeira leitura.

Depois de As Intermitências da Morte e do Ensaio Sobre a Cegueira, desaguei na releitura de  A História do Cerco de Lisboa.

Pós Terra do Pecado e A Clarabóia, será, juntamente com Jangada de Pedra, dos menos citados romances de Saramago.

No entanto, José Carlos de Vasconcelos, num texto publicado a acompanhar uma entrevista, publicada no JL de 18 de Abril de 1989, não tem dúvidas em considerar A História do Cerco de Lisboa o melhor romance do José Saramago, o de mais notável construção, simultaneamente o mais inventivo e o mais equilibrado, o de maior riqueza e até complexidade de planos, que se vão sucedendo, entrelaçando ou quase sobrepondo, apesar de oito séculos de história os separar, e ao mesmo tempo o mais límpido até na escrita.

Por seu turno o crítico António Cabrita dirá.

Um belo e feliz romance.

Assino por baixo.

Numa amena e simples conversa com a revisora dos seus livros na Caminho, José Saramago, a dado passo, ouve-a dizer: 

Dos revisores é que nunca ninguém se lembra.

O autor não ligou muito ao que foi dito mas, o que é certo, é que a frase fica-lhe a bailar por dentro.

Assim nasce a história de um homem, Raimundo Silva de seu nome, que está a rever um livro que se chama História do Cerco de Lisboa. 

Intencionalmente apõe um não a um texto histórico sobre o cerco de D. Afonso Henriques a Lisboa.

Está como fascinado, lê, relê, torna a ler a mesma linha, esta que de cada vez redondamente afirma que os cruzados ajudarão os portugueses a tomar Lisboa

(pág. 48)

É evidente que acabou de tomar uma decisão, e que má ela foi, com a mão firme segura a esferográfica e acrescenta uma palavra à página, uma palavra que o historiador não escreveu, que em nome da verdade histórica não poderia ter escrito nunca, a palavra Não, agora o que o livro passou a dizer é que os cruzados Não auxiliarão os portugueses a tomar Lisboa, assim está escrito e portanto passou a ser verdade, ainda que diferente

 (pág. 50)

O erro é descoberto, publica-se a obra com uma errata e os directores da editora chamam Raimundo à pedra dizendo-lhe que semelhante coisa não voltará a acontecer sob pena de prescindirem dos seus serviços de revisor.

Maria Sara, responsável da editora pelos revisores, presente na reunião mas que nada disse, chama Raimundo Silva ao seu gabinete e entrega-lhe um exemplar do livro sem a errata. E a partir do voluntário erro incita-o a escrever a reinvenção da história do cerco de Lisboa.


Não me peça que explique, mais do que senti-lo, vejo-o, foi tudo isso, repito, que se condensou na sugestão que decidi fazer-lhe, E que é, A de escrever uma história do cerco de Lisboa em que os cruzados, precisamente, não tenham ajudado os portugueses, tomando portanto à letra o seu desvio

(pág.109)

José Saramago na entrevista a José Carlos Vasconcelos:

Eu penso que todos os revisores gostariam de ser autores. Mas este revisor não quer propriamente escrever um livro. O que há em certa altura, é um momento de insurreição que o leva a introduzir num texto que ele devia respeitar, que é obrigação sua defender e conservar, que o leva a introduzir a negação, a dizer que não é verdade aquilo que historicamente aconteceu. E a partir daí encontra-se numa situação difícil, da qual sai por obra e graça de uma mulher. Como em geral acontece nos meus livros.

Ainda Saramago, numa entrevista a Clara Ferreira Alves, publicada no Expresso:

Considero difícil escrever um romance sem lhe meter uma história de amor, mesmo que se trate de amores infelizes. Sempre terá que haver um homem e uma mulher e neste livro a história de amor empurrou a história da guerra.

A página 123, Raimundo Silva interroga-se:

Que vou eu escrever Por que ponta vou eu pegar nisto

Seguindo o sentir de Saramago, Maria Sara e Raimundo Silva apaixonam-se e essa paixão corre ao mesmo tempo que a relação entre Ouroana e o soldado Mogueime, personagens da trama afonsina que Raimundo vai tecendo.

A  páginas 123 já se interrogara:

Que vou eu escrever… por que ponta vou eu pegar nisto.

A páginas 239, numa conversa telefónica, já com o amor declarado:

Deixe que me despeça com um beijo, está a chegar o tempo deles, Para mim já vai tardando, Só uma pergunta mais, Diga, Já começou a escrever a História do Cerco de Lisboa, Já, Não sei se continuaria a gostar de si se me respondesse que não, adeus.

E chegamos ao final:

São três horas da madrugada. Raimundo pousa a esferográfica, levanta-se devagar, ajudando-se com as palmas das mãos assentes sobre a mesa, como se de repente lhe tivessem caído em cima todos os anos que tem para viver. Entra no quarto, que uma luz fraca apenas ilumina, e despe-se cautelosamente, evitando fazer ruído, mas desejando no fundo que Maria Sara acorde, para nada, só para poder dizer-lhe que a história chegou ao fim, e ela, que afinal não dormia, perguntou-lhe, Acabaste, e ele respondeu, Sim acabei, Queres dizer-me como termina, Com a morte do almuadem, E Mogueime, e Ouroana, que foi que lhes aconteceu, Na minha ideia, Ouroana vai voltar para a Galiza, e Mogueime irá com ela, e antes de partirem acharão em Lisboa um cão escondido, que os acompanhará na viagem, porque pensas que eles se devem ir embora, Não sei, pela lógica deveriam ficar, Deixa lá, ficamos nós. A cabeça de Maria Sara descansa no ombro de Raimundo, com a mão esquerda ele acaricia-lhe o cabelo e a face. Não adormeceram logo. Sob o alpendre da varanda respirava uma sombra.


Na contra capa do livro, mais uma epígrafe do tal Livro dos Conselhos que nunca se publicou, não passando de uma feliz manobra de diversão do autor:

Enquanto não alcançares a verdade, não poderás corrigi-la. Porém, se a não corrigires, não a alcançarás. Entretanto não te resignes.

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