sexta-feira, 16 de outubro de 2015

V.S:T. & ETC


1. Entre vir dos Estados Unidos e voltar ao Rio de Janeiro, tenho estado na Rua da Esperança, Madragoa, Lisboa. Um grande amigo de um grande amigo cedeu-me, pelo preço de um quarto, o terceiro andar de um prédio antigo, daqueles com grades de madeira antes da porta de casa. No quarto andar viveu Saramago muitos dos seus anos pré-Nobel. Soube assim, ao chegar, que Baltasar e Blimunda tinham nascido por cima da minha alcova, pequena e interior como manda o dicionário. É uma informação de peso, mas quanto a livrinhos o que penso todos os dias é que a uma rua de mim vive o Vitor Silva Tavares.

2. Houve uma era, já depois do paleozóico, em que existiram editoras e livrarias em Portugal. Não conglomerados com modelos de negócio género 25 por cento de desconto nas novidades porque é Natal, terra da fraternidade (e já agora isso acaba com os derradeiros independentes), mas editoras e livrarias uma por uma seguindo o seu caminho. É verdade, isto aconteceu mesmo. E os jornais tinham cadernos literários. E chegavam cartas escritas à mão. E uma por outra vez na vida essas cartas traziam um manuscrito do Vitor Silva Tavares (sem acento agudo, que ele não usa).

(4. Ele diria cartinhas, porque nisso é como os mexicanos: folhas brancas, caneta preta, uma letra quase escolar de tão legível, nos antípodas dos hieróglifos de Eduardo Lourenço, que também mandava manuscritos para a redacção do PÚBLICO, mas por fax, um artefacto da época.)

5. Um manuscrito do Vitor é um suplemento de ferro, tomem lá, ó esquálidos. Qualquer textinho lhe sai uma beleza, como se saísse assim da boca dele, pardal de muita conversa e muito livrinho. Em suma, o mais antigo editor paralelo em Portugal é toda uma língua. Paralelo, e não alternativo, porque uma editora paralela nunca se encontra com as outras, faz o seu caminho ao lado. No caso do Vitor, ao lado e subterrâneo. Não é uma metáfora, é uma morada: & etc, rua da Emenda, 30, cave 3.

6. Vem tudo isto a propósito do livro “&etc — uma editora no subterrâneo”, iniciativa da livraria Letra Livre, coordenada por Paulo da Costa Domingos e lançada ontem no Teatro A Barraca, para celebrar 40 anos de resistência de Vitor Silva Tavares. Um livro quadrado, como os mais de trezentos da & etc, só maior e mais espesso (declaração de interesses: inclui uma entrevista que fiz ao Vitor em 2007 para o PÚBLICO, na versão longa que só saíra online). Revela inéditos, textos, desenhos, cartas e outros documentos, sem esquecer o auto de busca da Polícia Judiciária à edição de “O Bispo de Beja”. Foi a única vez que Vitor Silva Tavares fez uma reimpressão. De resto, quem tem os livrinhos da & etc guarde-os bem, não haverá outros iguais. E quem não tem, procure os há muito tempo não esgotados: conservam-se inteiros, sem o risco da guilhotina. O Vitor não faz livros para os destruir.

7. “Amante de livros e radicalmente livre”, diz o primeiro texto deste volume-celebração a propósito de Vitor Silva Tavares. Radicalmente livre é direito e dever, todo um programa solitário que dá trabalhinho, a começar pela liberdade de não trabalhar, ou de trabalhar sem alimentar o mercado. As páginas que contam esta história estão aí, é comprar o livro, não vou contar. Mas para quem não conhece a & etc, ou seja, em que consiste a resistência, cito desse texto inicial: “A singularidade da & etc reside não apenas no formato peculiar dos seus livros, verdadeiros objectos de arte negra, na riqueza literária do seu catálogo, em que pontificam a poesia e a escrita dissidente, mas também no seu modo de produção ímpar: todos os títulos têm apenas uma edição, com excepção única para ‘O Bispo de Beja’, obra apreendida e destruída em 1980 pelas autoridades democráticas da época; os autores abdicam tacitamente de cobrar honorários pelos seus direitos autorais; a tiragem, embora tenha oscilado face aos hábitos de leitura, é igual para todos os livros, independentemente do autor em questão; existe uma total recusa de subserviência aos poderes culturais; os livros são editados sem qualquer apoio institucional e impressos em pequenas tipografias e as formas de promoção do livro contradizem as práticas comuns do mercado: sem saldos, sem lançamentos ou ofertas aos críticos.”

 8. Não é um modelo de desenvolvimento nem uma receita colectiva, mas o caminho de um só homem, com os laços que ele vai atando e desatando, do tipógrafo ao ilustrador. Contraposta a este pré-Natal de abusos de posições dominantes, quase uma espécie de guerrilha, a força de um homem livre.

Alexandra Lucas Coelho, Público, 24 de Novembro de 2013

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