Relógio da sopa?
Oh! Lá está ele com o surrealismo.
O relógio de
cavalinho da sala de Vítor Silva Tavares, na Rua das Madres (mora na casa da
Madragoa onde nasceu, a 17 de Julho de 1937), quando era empenhado, nos seus
tempos de miúdo de pé descalço e língua de trapos ("se quiser, língua de
Gil Vicente", ironiza), garantia à família caldo melhorado com chouriço de
sangue ou naco de toucinho.
A alma da editora & etc orgulha-se da miséria em que cresceu. O que ajuda a perceber a forma como assume uma vida "radicalmente independente", de quem foi retorquindo aos que queriam ser seus patrões que ninguém o punha no "olho da rua", pois nunca de lá tinha saído. Mesmo sabendo "a moeda que se paga por um suplemento de liberdade, que - essa sim - é impagável".
O criador da
chancela livreira marginal é filho de um maquinista da marinha mercante, que
terá privado com o líder comunista Bento Gonçalves no Arsenal e tinha uma
biblioteca que ia de Alves Redol a Paço d'Arcos - todos os títulos devorados
por Vítor, leitor compulsivo desde que começou a juntar sílabas, não lhe
importando se a obra era assinada por Zola, Salgari ou Spillane -, e de uma
mulher que tanto trabalhava nas descargas de carvão e peixe como na fábrica das
anchovas e, na sua imaginação cinéfila, era uma Anna Magnani.O miúdo que a avó,
remendeira de velas de barcos e cantora de fados em tabernas, levava à sopa dos
pobres do Sidónio, chegou a ver filmes atrás do ecrã - "o cavalo de John
Wayne, em vez de cavalgar da esquerda para a direita, andava ao
contrário". Mais tarde, trocaria os piolhos pelos cineclubes, os musicais
da MGM pelo neo-realismo italiano - e lembra que este cinema permitiu a Joaquim
Namorado dar um nome ao realismo socialista português.
Filho ilegítimo, pela legislação da época, foi rejeitado na escola oficial e frequentou aulas particulares em casa de duas velhotas, que ensinavam pela pedagogia da I República e liam passagens de poemas de Junqueiro e João de Deus que o futuro editor de nomes como Pedro Oom, Cesariny ou Herberto Helder, o amigo de Manuel da Fonseca, de João César Monteiro, de outros mais, ainda sabe de cor. Aluno de quadro de honra, mas revoltado no liceu da elite, num exame do 5º ano (actual 9º) atirou o hemisfério de Magdeburgo à cabeça do professor e foi expulso
Coleccionou ofícios, de empregado de escritório numa firma importadora de bisturis cirúrgicos a pintor de Cristos a óleo que um marchand vendia para conventos. Fez cenografia e adereços no teatrinho de bolso das Janelas Verdes - e Almada ficou encantado com os figurinos dos anjos que Vítor Silva Tavares concebeu para a peça Deseja-se Mulher.
Em África, foi
examinador de cartas de condução em Angola (embora sem nunca ter tido o
documento que o habilitava a conduzir), jornalista de O Intransigente e
director de informação do Rádio Clube de Benguela. Ali rodou, com Juca Branco, Uma História do Mar, que, se ainda
existisse cópia, talvez fosse o primeiro filme de ficção angolano. Depois,
escreveu crónicas de cinema na revista Flama, contos no Diário Popular,
crónicas no República, textos sobre as mulheres no Jazz na Crónica Feminina,
coordenou o suplemento literário do Diário de Lisboa.
Aos 24 anos, era director literário da Ulisseia e, nos dois ou três anos em que esteve na editora, publicou obras como Os Condenados da Terra, de Frantz Fanon (que "era a Bíblia dos guerrilheiros africanos"), ou Viagem ao Fim da Noite, de Céline ("o que me valeu ser considerado um reaça do pior"). Além dos censores, tinha a visita, "mês sim, mês sim", de brigadas da PIDE, pois lançava títulos como Praça da Canção (Manuel Alegre) ou Feira Cabisbaixa (Alexandre O'Neill). Ao publicar Crítica de Circunstância (Os Doutores, a Salvação e o Menino Jesus), de Luiz Pacheco, um polícia político perguntou a Vítor Silva Tavares se não lhe parecia que farsista, como era designado o tirano Herodes, era parecido com fascista.
Em 1967, quando o Jornal do Fundão foi suspenso por seis meses, preparava-se um magazine de letras, artes e espectáculos para se publicar naquele semanário oposicionista, mas com a sageza de evitar que fosse logo proibido. E no primeiro dos 26 números desse suplemento & etc - que haveria de ser revista autónoma de 1973 a 1974, tornando-se, depois, apenas editora - havia textos sobre o filme Pedro, o Louco, o fadista Alfredo Marceneiro e o novo bar Snob.
O nome foi
inventado por José Cardoso Pires, que nunca esqueceu o concelho de Aquilino,
após lhe entregar um exemplar do livro de estreia, Os Caminheiros e Outros Contos : "Sabe o que é preciso para
se ser escritor? Orelhinha!" E foi assim que, ao correr da conversa sobre
o magazine, notando que Vítor Silva Tavares repetia a expressão & etc
(talvez reminiscência do seu livro angolano Hot e Etc), Cardoso Pires soltou uma espécie de eureka.
E como está a chancela de culto, que só faz pequenas tiragens e (excepto O Bispo de Beja, apreendido pela PJ) nunca reedita qualquer título? "Está há 36 anos na falência", diz o amante de livros, que não tem automóvel, computador ou telemóvel.
E como está a chancela de culto, que só faz pequenas tiragens e (excepto O Bispo de Beja, apreendido pela PJ) nunca reedita qualquer título? "Está há 36 anos na falência", diz o amante de livros, que não tem automóvel, computador ou telemóvel.
Fernando Madail em Diário de Notícias, 4 de Setembro de
2010
Legenda: conjunto de capas de livros publicados pela &etc tiradas de &etc Uma Editora no Sibterrâneo
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