Um velho recorte
do Diário de Lisboa de 29 de Outubro de 1988
De uma velha
conversa com Baptista Bastos:
Eu diria que
vivi tudo o que vivi para poder chegar a ela. A Pilar deu-me aquilo que eu já
não esperava vir a ter.
Dedicatória de
As Pequenas Memórias:
A Pilar, que
ainda não havia nascido, e tanto tardou a chegar.
Pilar del Riolera O Ano da Morte de Ricardo Reis.
Tanto gostou que disse a si mesmo que visitaria o autor para lhe agradecer tratar tão bem os seus leitores e fazer o percurso que vem no livro: Hotel Bragança, Cemitério dos Prazeres, Alto Santa Catarina, por aí fora.
Tanto gostou que disse a si mesmo que visitaria o autor para lhe agradecer tratar tão bem os seus leitores e fazer o percurso que vem no livro: Hotel Bragança, Cemitério dos Prazeres, Alto Santa Catarina, por aí fora.
Telefonou a
Saramago e encontraram-se num hotel para um café.
Excepção feita a
Manual de Pintura e Caligrafia e, naturalmente, em As Pequenas Memórias,
Saramago sempre foi parco em deixar pedaços da sua vida nos livros.
A excepção é o
encontro com Pilar.
Está na pág. 119
de Jangada de Pedra:
Tem ali uma
senhora à sua espera. Parou José à entrada da sala, viu uma mulher nova, uma
rapariga, só pode ser esta, não há aqui outra pessoa, apesar de estar na
contraluz dos cortinados das janelas parece simpática, ou mesmo bonita, veste
calças e casaco azuis, de um tom que deve ser anil, tanto pode ser jornalista
como não, mas ao lado da cadeira onde se senta tem uma pequena mala de viagem e
sobre os joelhos um pau nem pequeno nem grande, entre um metro e um metro e
meio, o efeito é perturbador, uma mulher assim vestida não se passeia pela
cidade de pau na mão, Jornalista não será, pensou José Anaíço, pelo menos não
estão à vista os instrumentos do ofício, bloco de papel, esferográfica,
gravador.
A mulher
levantou-se, e este gesto inesperado, pois está dito que as senhoras, segundo o
manual de etiquetas e boas maneiras, devem esperar nos lugares que os homens se
aproximem e as cumprimentem, então oferecerão a mão ou darão a face, de acordo
com a confiança e o grau de intimidade e sua natureza, e farão o sorriso da
mulher, educado, ou insinuante, ou cúmplice, ou revelador, depende. Este gesto,
talvez não gesto, mas o estar ali, a quatro passos, levantada uma mulher
esperando, ou, em vez disso, a súbita consciência de se ter suspendido o tempo
enquanto não for dado o primeiro, é verdade que o espelho é testemunha, mas de
um momento anterior, no espelho José Anaíço e a mulher ainda são dois
estranhos, deste lado não, aqui, porque vão conhecer-se, conhecem-se já. Este
gesto, este gesto de que antes não se pôde dizer tudo, fez mover-se o chão de
tábuas como um convés, o arfar de um barco na vaga, lento e amplo, esta
impressão não é confundível com o conhecido tremor de que fala Pedro Once, não vibram, de José
Anaíço os ossos, mas todo o seu corpo sentiu, física e materialmente sentiu,
que a península, por costume e comodidade de expressão ainda assim chamada, de
facto e de natureza vai navegando, só o saiba por observação exterior, agora é
por sua sensação própria que o sabe.
Legenda: A
fotografia do Hotel Bragança, finais dos anos 50, é tirada do blogue Restos de Colecção.
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