No dia 26 de Fevereiro o Público publicava uma
excelente entrevista, feita por Bárbara Reis, a Maria Filomena Molder, nascida
em Campo de Ourique, 72 anos, professora, filósofa, doutorada com a tese O Pensamento Morfológico de Goethe, apreciadora de Agustina Bessa Luís, contra o Acordo Ortográfico, não tem
telemóvel, nem televisão e a entrevistadora acaba por a puxar para algo que
pouco ou nada aborda: a guerra, mas «um desafio é para mim sempre irresistível» e vai dizendo:
«Não tenho
acompanhado, nem quero acompanhar a guerra, para além do mínimo possível. Como
não tenho televisão, raras vezes vejo imagens, mas já aconteceu, não só imagens
em directo, como também documentários de tese feitos ainda os mortos estão por
enterrar (todos os dias há mortos por enterrar, não é?).
Todo o género de
interesses dos senhores da guerra e de tudo quanto se lhes associa, incluindo
os meios de comunicação e quem os controla. Os turistas acham que sim, que
4000km é uma boa distância, e nós também.
As palavras quer de
Putin, quer de Zelensky são as de dois actores bem ensaiados, se bem que só um
tenha estudos no ramo. Ambos são retóricos que utilizam as palavras como armas
de arremesso ou como gestos de sedução. Ambos querem convencer.
Putin tem uma escola
mais elaborada, pois fez o seu tirocínio no KGB. Comparado com ele, Zelensky
parece um amador, um principiante. Putin tem os traços de um espírito doente,
um psicopata, como se diz na gíria do nosso tempo, um homem desprovido do
sentimento de simpatia e da faculdade de comunicar de uma maneira íntima e
universal, a que Kant chamava humanidade.
Ao invés, ele está
preparado para a destruição final, desde que nem um dos seus cabelos seja
afectado (apesar de ele já poucos ter). Viu a série de entrevistas que Oliver
Stone lhe fez? Vale a pena.
Há uma coisa que
falta a Putin e que se observa em Zelensky, a coragem. Putin não é um homem
corajoso, é calculista de mais para poder exercitar essa disposição. Rodeia-se
de mil protecções. Não se lembra como e onde ele esteve resguardado durante os
períodos mais críticos da pandemia? Isso diz tudo sobre a sua solidariedade com
o povo russo. Também tenho muita dificuldade em imaginá-lo numa reunião de
conversações para pôr fim a esta guerra ou a outra qualquer empreitada em que
esteja implicado.
Por outro lado,
também não vejo bem quem esteja interessado e tenha alguma ideia precisa sobre
o modo de fazer acabar a guerra. Os impérios tendem a manter-se impérios até
serem esfacelados por forças externas e/ou corroídos por forças internas.
O império americano
desejaria aniquilar o que resta do império russo-soviético. O que se irá passar
não sei. Muitas vezes acho que a nossa vida tem uma estrutura dupla, que
reproduz a dualidade da metafísica mais banal, como nos filmes do James Bond.
Uma das estruturas, a que deriva da sociedade e dos seus afazeres, é manifesta
e irrelevante. A outra, secreta e soberana, manobra os cordelinhos da estrutura
manifesta. Como na história do burro e da cenoura ou a do jogador mecânico de
xadrez de que [Walter] Benjamin fala. Neste caso, entra em cena uma relação
entre história (a estrutura manifesta) e teologia (a estrutura oculta).
Uma sociedade que
quer a todo o custo evitar o acaso, a surpresa, empenhada em domesticar o
desconhecido e em esconder, disfarçando-a, a violência da vida, está à mercê do
medo sem fim. Com raras excepções, os meios de comunicação ajudam à festa.
Heráclito achou que, para os seres humanos, a melhor coisa não é que aconteça
tudo quanto querem. Será que estaremos algum dia preparados para entender isto?
Agora a novidade
radical é que os seres humanos assistem à morte em directo a milhares de
quilómetros de distância, através de dispositivos técnicos de reprodução,
sentados em casa ao abrigo das intempéries. Estamos no reino das imagens
técnicas que se podem gravar, voltar a reproduzir, para repor mais tarde,
depois do jantar. O que nos vale é a expectativa de inventar, para utilizar uma
imagem com origem na guerra, espaços de manobra.
Quanto aos 70 anos de
paz na Europa, convém não esquecer a guerra sangrenta na ex-Jugoslávia e os
seus horrores inabsorvíveis. Lembro-me de que em 1991 estava em Heidelberg
[Alemanha] com uma bolsa do DAAD e via na televisão os transportes cheios de
mulheres e crianças que acabavam de se despedir dos homens e rapazes que
ficavam em Belgrado à mercê do que pressentiam e temiam. Ainda durou uns dez
anos. Tanta gente morta ao deus-dará, tantas culpas por apurar, tantos interesses
por esclarecer.
Quem ganhou aquela
guerra e quem ganhou com aquela guerra? Quem perdeu aquela guerra? Da emigração
forçada temos notícia, pois vieram para Portugal sérvios, croatas,
montenegrinos.
Nesta guerra actual
há um país invasor e um país invadido. Isso é absolutamente claro.»
No meio da entrevista,
Molder cita os poemas de Carlos de Oliveira, Descrição da Guerra em Guernica
que fazem pate do livro Entre Duas Memórias, diz que são sublimes e cita o Poema IX:
Casas desidratadas
no alto forno; e
olhando-as,
momentos antes de
ruírem,
o anjo desolado
pensa: entre detritos
sem nenhum cerne ou
água,
como anunciar
outra vez o milagre
das salas;
dos quartos;
crescendo cisco
a cisco, filho a
filho?
as máquinas estranhas,
os motores com sede,
nem sequer
beberam o espírito das minhas casas;
evaporam-no apenas.
Por mim, saio aqui na Conversa, mas deixo-vos uma frase imensamente batida de
O Último Voo do Flamingo de Mia Couto:
«A guerra nunca
partiu, filho. As guerras são como as estações do ano: ficam suspensas, a amadurecer
no ódio da gente miúda.»
Dizer ainda que esta guerra que devasta a Ucrânia, dizem
os senhores da guerras não terá fim próximo.
Legenda: imagem de «Artsper Magazine.
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