Conta-me essa história, mas esquece deliberadamente
os nomes e as datas. Diz-me que essa primavera
era outra, muito mais antiga.
e agora lembrada sem querer ou por acaso. Conta-me
como foi, mas evita os pequenos detalhes intranquilos.
E, dos lugares, refere apenas os mais desconhecidos
e estranhos à memória. Não fales dos perfumes, dos desejos
ou dos demónios que de noite costumam enfeitiçar o corpo
e entretê-lo. E descreve todos os gestos hesitantemente,
como se fossem mesmo de outro tempo e deles
não mais guardasses que uma lembrança vaga e desprendida.
Conta-me de que falaram, mas escolhe, entre as palavras,
aquelas que pudesses não ter dito. E nunca escondas,
se os houve, os pensamentos tardios que, atrás delas,
tacteariam às cegas, sem destino. Conta-me essa história, sim,
se achares que deve ser, que tem de ser. Mas fá-lo sempre
com quem dela esqueceu a maior parte e não consegue
lembrar-se do desfecho, final feliz ou não.
Assim escutá-la-ei até ao teu silêncio
como um romance antigo, meio lido, perdido agora
entre outros numa estante e para sempre incompleto.
As outras histórias, de amanhã ou depois,
hei-de ouvi-las inteiras: são livros por escrever,
lugares distantes, coisas por inventar no tempo
que aí vem, nomes que não se adivinham nem magoam.
Maria do Rosário
Pedreira em A Casa e o Cheiro dos Livros
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