segunda-feira, 30 de setembro de 2024

OLHAR AS CAPAS


A Funda

4º Volume

Artur Portela Filho

Carta-Posfácio: Norberto Lopes

Capa: Guilherme Prosperi

Editora Arcádia, Lisboa, Abril de 1974

Era o filho pródigo do Regime.

Fizera, no Direito, a ideologia, a família moral, o destino histórico.

Estava talhado, calibrado, destinado.

Não era um acidente - era uma raça.

Tinha, sobre a cabeça, a estrela. Na fronte, o halo. No olhar, a certeza. No sorriso, a sorte.

E quando passava, nos corredores pombalinos do poder, soltando a sua risada aguda, o seu gesto largo, todos os barões, acercando, cochichadamente, as cabeças, o seguiam com um olhar terno.

Era Marcello.

Era Rebello.

Era De Souza.

E, excessivamente, Nuno.

Foi o escândalo.

Foi o escândalo quando ele, recusando sob Martinez, a reprise, rechaçando, sob Dias Rosas, a tarimba, apareceu por sobre o ombro Pestana & Brito de Francismo Balsemão, a espreitar.

Era a fronda do Expresso.

Não quiseram crer. 

E, no entanto, era bem ele, a vivacidade Tim-Tim, a barba Trotsky, o olhar Harold Loyd.

E o riso fácil, a voz estaladamente metálica, a inteligência extravasante, o brilho incontrolado.

O próprio excesso.

O Regime empalideceu.

A Esquerda riu. E a 3ª Força, ela mesmo, sentiu, naquele Gotha revoltado, naquela lei de  Mendel às avessas, naquela Divisão Azul, um compromisso, uma má consciência, um lastro, uma trela.

Um chumaço.

Uma bala de madeira.

Uma injustiça.

domingo, 29 de setembro de 2024

DISTO, DAQUILO E DAQUELOUTRO

Em Junho, Mia Couto venceu o Grande Prémio de Conto Branquinho da Fonseca da Associação Portuguesa de Escritores pelo livro «Compêndio para Desenterrar Nuvens.»

António Rodrigues, a propósito deste novo prémio de Mia Couto, para o Público de 30 de Agosto, suplemento Ipsilon, realizou uma excelente entrevista com o escritor moçambicano.

«Fico sempre surpreendido quando ganho um prémio. Não é coisa de falsa modéstia, mas sinto-me bem não tendo essa expectativa de poder ganhar, senão o prazer de fazer o livros e de escrever.»

António Rodrigues pergunta a Mia Couto:

Já sabe como vai gastar o dinheiro do prémio? Tem algumas dívidas para pagar?

«Quando se trata de dinheiro, sou péssimo. E sou péssimo, porque, felizmente, tenho algum privilégio, olhando para o mundo e para a maior parte das pessoas, para quem o dinheiro é uma preocupação do quotidiano. Não sendo rico, não tenho, nunca tive essa preocupação. Acho que se fosse mais pobre também não teria, porque eu via pelos meus pais, que não era gente que vivia de maneira folgada, antes pelo contrário, que ali faziam-se contas, mas o meu pai, que era poeta, nunca as fez. Era a minha mãe que controlava esse lado da vida. Eu herdei um pouco do meu pai esta coisa de estar desamarrado, e é um grande privilégio.»

Como já disse: uma excelente entrevista e um tempinho ainda para o seu final:

«Para terminarmos, e como diz que a sua linguagem é a linguagem da poesia, gostava de lhe perguntar: qual foi o seu verso mais conseguido?
Não lhe sei responder, mas o primeiro poema que fiz foi ao meu pai e, mais tarde, quando o meu pai morreu, despedi-me dele por via da poesia e percebi que tinha voltado a um verso feito 40 anos antes e que falava dessa criatura que vivia numa varanda como se vivesse num palácio. Como não sabia o que fazer com ele próprio, ficava ali com as mãos estendidas como se recolhesse esse orvalho que imaginava estar a tombar do céu. O verso não é exactamente esse, mas isso perseguiu-me como a grande lição do meu pai: dar importância àquilo a que ninguém ligava. O meu pai, no meio da guerra colonial, andava à procura de pedrinhas e sementes e olhava os pelicanos que passavam. Ensinou-nos a ver o que não tinha importância para os outros».

1.

Em apenas três dias, 2024 tornou-se o quarto pior ano da década em área ardida.

Do Público de 18 de Setembro

2.

No seu programa da SIC intitulado Conversas Secretas, o escritor Baptista-Bastos popularizou a pergunta «onde é que você estava no 25 de Abril?». Esta pergunta foi o ponto de partida para a Fundação José Saramago que, no quadro das comemorações dos 50 anos da Revolução de Abril, inverteu a questão e lançou um ciclo de conversas com o mote «Onde estarias se não fosse o 25 de Abril?».

sábado, 28 de setembro de 2024

COMO SE CHEGOU AQUI?


«A cidade no verão tem menos carros. Mas os “menos” carros são ainda muitos carros demasiados carros.

Seria interessante fazer-se um cálculo simples, que talvez exista já, mas que não conheço. El alguma cidades, calcular o espaço público disponível – estradas, passeios, jardins, etc. – e perceber qual a percentagem ocupada por pessoas.

E uma pergunta ainda. Não sobre carros, mas sobre algo bem mais sério.

Há uma tragédia recente, inaceitável, que em poucos anos, se tornou quase parte da paisagem social. – paisagem, ou seja, algo a que quase já não se dá atenção.

O emprego sempre foi historicamente aquilo que tirava as pessoas da pobreza. Não ter emprego implicava o risco de cair no total desamparo. Ter emprego era o objectivo, a salvação.

É muito recente este facto, que é dinamite social: muitos hoje têm emprego e são pobres. Ter emprego já não significa sair da pobreza. Hoje há pessoas com emprego que são sem-abrigo. Isso mesmo. Vão trabalhar e regressam depois à rua, para dormir.

Como se chegou aqui?»

Gonçalo M. Tavares, de uma crónica no Expresso, 6 de Setembro de 2024.

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

HÁ SEMPRE UMA ABÉBIA PARA DAR O FROSQUE


 Por Outubro aparecia nas livrarias um novo livro de António Lobo Antunes.

Como por aqui fui escrevendo, há muito que deixei de ler romances seus, ele que tanto me entusiasmou. As últimas palavras que dele gostava de ler, encontram-se nas crónicas que publicava em jornais e revistas, depois reunidas em livro. Mas já há algum tempo que nada disto acontecia.

Soube agora que António Lobo Antunes, por a demência o ter atingido, não mais escreverá.

Em 2016 publicou Para aquela que está sentada no escuro à minha espera.

José Cardoso Pires, grande amigo de Lobo Antunes, escreveu, Janeiro de 1997, no seu De Profundis, Valsa Lenta:

«Como despedida, a festa anunciada parece-me uma vinheta mas, se me é permitido, acrescento-lhe um fio de música.»

Conheci o escritor António Lobo Antunes através de uma entrevista que o jornalista Carlos Miranda publicou no jornal A Bola, 1980.

Comprei então Memória de Elefante, publicado pela Vega, e largamente, durante anos e anos, fui um entusiasta leitor.

«São cinco da manhã e juro que não sinto a tua falta. A Dóri está lá dentro a dormir de barriga para cima, de braços abertos crucificados no lençol, e a dentadura postiça, descolada do céu da boca, avança e recua ao ritmo da respiração num ruído húmido de ventosa. Bebemos ambos a aguardente da cozinha pelo púcaro de folha, sentados nus na cama que o gás de guerra tornou inabitável carbonizando até as folhas estampadas das fronhas, escutei-lhe as confidências prolixas, enxuguei-lhe o choro confuso que me tatuou o cotovelo de um arbusto de rímel, puxei-lhe o cobertor até ao pescoço à laia de um sudário piedoso sobre um corpo desfeito, e vim para a varanda arrancar os dejectos endurecidos dos pássaros. Está frio, as casas e as árvores nascem lentamente do escuro, o mar é uma toalha cada vez mais clara e perceptível, mas não penso em ti. Palavra de honra que não penso em ti. Sinto-me bem, alegre, livre, contente, oiço o último comboio lá em baixo, adivinho as gaivotas que acordam, respiro a paz da cidade ao longe, desdobro-me num sorriso feliz e apetece-me cantar. Se eu tivesse telefone e me telefonasses agora deverias encostar cuidadosamente o auscultador à orelha numa expectativa de búzio: através das espiras de baquelite, vindo de quilómetros de distância, desta varanda de betão suspensa sobre o fim da noite, terias, juntamente com o eco do meu silêncio, o vitorioso eco do meu silêncio, o piano amortecido das ondas. Amanhã recomeçarei a vida pelo princípio, serei o adulto sério e responsável que a minha mãe deseja e a minha família aguarda, chegarei a tempo à enfermaria, pontual e grave, pentearei o cabelo para tranquilizar os pacientes, mondarei o meu vocabulário de obscenidades pontiagudas. Talvez mesmo, meu amor, que compre uma tapeçaria de tigres como a do Senhor Ferreira: podes achar idiota mas preciso de qualquer coisa que me ajude a existir.»

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

OLHAR AS CAPAS


Portugal Contemporâneo

Oliveira Martins

Guimarães Editores, Lisboa 1953

 

S.M. fora a Belém comer uma merenda. Era nos primeiros dias de março. Quando voltou ao pal´cio achou-se, à noite, mal – câibras, sintomas de epilepsia. Vieram médicos: o barão de Alvaiázere e o valido cirurgião Aguiar. No dia seguinte (5) o estado do enfermo piorou, e o rei decidiu-se a despir de si o pesado encargo do Governo. A 7, a Gazeta publicava o decreto nomeando a Regência, presidida pela  infanta D. Isabel Maria cuja bondade merecia as graças particulares do infeliz pai.

«Esta minha imperial e real determinação, afirmava o decreto do dia 6, regulará também para o caso em que Deus seja servido chamar-me à sua santa glória, enquanto o legítimo herdeiro e sucessor desta coroa não der as suas providências…» Mas quem era esse legítimo herdeiro? D. Pedro, o brasileiro? D. Miguel no seu desterro de Viena? Não o dizia o rei moribundo que toda a vida se achara indeciso, e acabava como tinha existido, sem uma afirmação de vontade, entre flatos, na impotência de uma morte oportuna. 

terça-feira, 24 de setembro de 2024

COMEÇOS DE LIVROS

A Morte É Um Acto Solitário de Ray Bradbury

É um maravilhoso começo de livro

«Veneza, na Califórnia, tinha, nos velhos tempos, muito que a pudesse recomendasse a quem gostasse de estar triste. Era o nevoeiro quase todas as noites, e era, ao longo da costa, o gemer das máquinas nos poços de petróleo, e o bater da água suja nos canais, e o zumbir da areia a roçar as vidraças, quando o vento assobiava à volta das praças e ao longo das ruas desertas.

Era no tempo em que o pontão de Veneza, a cair aos bocados, morria no mar. E podia ver-se então gigantesca ossada de dinossauro, a montanha-russa, a coberto ou a descoberto, com o vaivém das marés.

No fim de um longo canal, viam-se as caravanas de um circo, decrépitas, para lá atiradas e abandonadas. E quem olhasse para as jaulas, à meia-noite, veria que lá dentro havia vida – peixes e camarões de ´+agua doce, que andavam ao sabor da maré. E tudo isto, afinal, era o circo do tempo, feito ruína, desfazendo-se em ferrugem.»

Quantos anos? Depois continuamos a recordar quem não queremos esquecer.

«Tenho tudo em meio e já não me restam muitos anos para acabar o que está e há-de vir.»

Mário Sacramento

«Morrer era agora minha liberdade, e eu tinha a vida inteira para executá-la

pormenorizadamente.»

Herberto Helder

Há dois géneros de pessoas: as que acham que tudo se passa no principio e as que acham que tudo se passa no fim. Foi isso que T.S. Eliot sobre isso escreveu: «In my beginning is my end».

Ou como diria o vagabundo no bar irlandês, acabando a última Pin:

Life is a bitch… and then you die.

Miguel Torga diz que o homem é em si uma solidão:

«Nascemos sós, vivemos sós, morremos sós.»

Uma prosa existente na papelada da casa e que não consegue saber o autor, ou os papéis de onde copiou, num guardanapo de café de bairro, a citação:

«Todos devemos deixar qualquer coisa atrás de nós, ao morrermos, dizia o meu avô. Um filho, um livro, um quadro, uma casa, uma parede ou um par de sapatos. Ou ainda um jardim plantado de flores. Qualquer coisa que a mão tocou e para onde irá a alma no instante da morte, E quando as pessoas olharem essa árvore ou essa flor que plantámos nós, estamos lá, sob os seus olhos.»

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

MÚSICA PELA MANHÃ


Disse Salvador Sobral que  «Autumn in New York» é para mim o standard mais bonito... O Wynton Marsalis disse um dia que nunca se ouviu jazz até se escutar a Billie Holliday a cantar o «Autumn in New York».

«Autumn in New York» é um standard de 1934, letra e música de Vernon Duke.

Que raio terá o Outono m Nova Iorque para ser tão convidativo?

Diz quem viu, que é um espectáculo de extraordinária beleza, as mais variadas folhagens que imaginar se possa.

Cheguei lá pelo cinema, pelas fotografias.

Dor e amor, sonhadores com mãos cheias de nada que, mesmo esforçadamente, conseguem chegar mais longe.

É bom viver o Outono nos milhares de Parques Centrais espalhados por este mundo.

Será?

Fazer por isso mesmo que hoje, aqui, tenhamos que viver um Outono que se passeia lá fora disfarçado de Verão.

Mas o importante é a visibilidade dos afectos.

Os pássaros voltarão em Março. 

DIA DE OUTONO

Senhor: é tempo. O Verão foi muito longo.
Lança a tua sombra sobre os relógios de sol
e solta os ventos sobre os campos.

Ordena aos últimos frutos que amadureçam;
dá-lhes ainda dois dias meridionais,
apressa-os para a plenitude e verte
a última doçura no vinho pesado.

Quem agora não tem casa, já não vai construí-la.
Quem agora está só, assim ficará por muito tempo,
velará, lerá, escreverá longas cartas
e vagueará inquieto pelas alamedas acima e abaixo,
quando caírem as folhas.

Rainer Maria Rilke

domingo, 22 de setembro de 2024

ELES TERÃO QUE PAGAR AS CRISES!

O Papa Francisco quer que os ricos paguem mais impostos.

Numa reunião no Vaticano, Francisco recusou frontalmente o sistema económico actual:

«Enquanto não se resolverem os problemas dos pobres, não se resolverão os problemas do mundo.»

OLHAR AS CAPAS


Sermão Sobre a Paz

Padre António Vieira

Prefácio e notas : António Sérgio

Colecção Textos Literários

Editora Seara Nova, Lisboa, 1938

A paz é uma concórdia recíproca e relativa; e tudo aquilo que é recíproco e relativo, em faltando e se perdendo de uma parte, necessariamente falta e se perde também da outra.

sábado, 21 de setembro de 2024

MORTES NOS FILMES

«Não gos­tava de muitas mor­tes nos fil­mes – “os cadá­ve­res não sabem representar”, explicou ele, achando que era um desperdí­cio e uma san­gria desa­tada cortar-se sim­ples­mente a cabeça à vítima.»

Manuel S. Fonseca na sua Página Negra

OLHAR AS CAPAS


 

Contos

Fialho D’Almeida

Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1941

Sem querer tinha reparado numa cousa – o tio Sabino não oferecia na pronunciação o menor resaibo brasileiro. O Alfredo apontára-lh’o como homem inteligente e amigo de leituras; bem podia ser por conseguinte, que aquella correcção no dizer, um pouco lisboeta por ventura, fosse esforço de estudo e evidente resultado da resistência ao contagio.

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

A LEVEZA TERRÍVEL DAS SUSPEITAS MONTEGRINAS


Alguém disse ao primeiro-ministro Montenegro que, nos cafés da província se diz que os incêndios são despoletados por uns tolos, por gentes sem qualquer ponta de escrúpulos que querem de qualquer maneira arranjar uns cobres para a droga, para o vinho, amalucados pagos por madeireiros.

E Montenegro, com Marcelo ao lado, pôs a pata na poça, e disse ao povo que o governo não daria descanso a esses energúmenos.

Daniel de Oliveira no Expresso:

«Montenegro conseguiu que tudo o que é político, do ordenamento do território à invasão do país pelo eucalipto, da economia da floresta às falhas iniciais destes incêndios, desaparecesse. Sem perguntas, com o Presidente como escudo e a ministra da Administração Interna fechada numa cave durante os dias mais críticos, fez do fogo posto o tema central, lançando suspeitas vagas e prometendo substituir-se à polícia. Assim, o Governo passou de ator político a vítima do crime, desviando as atenções para o que enoja todos. Em comparação com 2017, demonstra génio na comunicação política. Mas isso chega?»

Pedro Tadeu no Diário de Notícias:

« O antigo primeiro-ministro António Costa governava quando ocorreu uma enorme tragédia com incêndios. Todos sabemos que nesse ano de 2017, somando os incêndios em Pedrógão Grande, Oliveira do Hospital, Tábua, Arganil e outros, contaram-se 116 mortes.

Com o país em estado de choque, o então primeiro-ministro António Costa, apoiado pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, prometeu uma verdadeira revolução na gestão florestal para a tornar mais resistente aos fogos; anunciou a obrigatoriedade dos proprietários rurais cortarem, todos os anos em maio, o mato que estivesse próximo de habitações; criou operações de limpeza e de abertura de faixas de contenção no meio do arvoredo; prometeu um grande recenseamento dos terrenos para se saber quem era dono do quê e para planear emparcelamentos que facilitassem a conservação dessas áreas; modificou o funcionamento da Proteção Civil e a sua ligação aos bombeiros criando uma entidade especializada no combate a fogos rurais; garantiu, na União Europeia, o apoio de reforços aéreos de combate a incêndios sempre que fosse preciso; lançou não sei quantas campanhas de sensibilização e vários sistemas de avisos das populações sobre incêndios, que foram da publicidade institucional às mensagens telefónicas que nos perturbam os telemóveis.Tivemos, depois desses e de outros anúncios, seis anos de relativo sossego florestal.

Sete anos depois vejo na televisão o atual primeiro-ministro, Luís Montenegro, apoiado pelo Presidente da República, o mesmo Marcelo Rebelo de Sousa de 2017, consternados com as, até agora, sete mortes provocadas pelos incêndios dos últimos dias.»

OS DIAS VISTOS DO CAFÉ DO MONTE


«Entretanto houve o sismo. Por aqui, fomos todos poupados às tremedeiras da Terra. Felizmente, por onde elas foram sentidas, tudo não foi além do susto. E se a grande literatura, como estou convencida, nos prepara para tudo, até para a nossa morte (mas nunca para a morte dos outros…), é então de ir ler Voltaire. Sinal dos tempos, não ouvi ninguém falar do Cândido ou de Pangloss.»


Ana Cristina Leonardo, da crónica no Público de 30 de Agosto

Legenda: pormenor da capa do Cândido de Voltaire da edição da Colecção de Bolso das Publicações Europa-América.

OLHAR AS CAPAS


Sátiras

Nicolau Tolentino

Selecção, Prefácio e Notas: Rodrigues Lapa

Colecção: Textos Literários

Seara Nova Editores, Lisboa, 1960

 

Passei o rio que tornou atrás,

se acaso é certo o que Camões nos diz,

em cuja ponte um bando de aguazis

registam tudo quanto a gente traz.

 

Segue-se um largo. Em frente dele jaz

longa fileira de baiúcas vis.

Cigarro aceso, fumo no nariz,

é como a companhia ali se faz.

 

A cidade por dentro é fraca rês;

as moças põem mantilhas e andam sós,

têm boa cara, mas não têm bons pés.

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

POSTAIS SEM SELO


O passado é um país estrangeiro: lá as coisas são feitas de maneira diferente.

L.P. Hartley

OLHAR AS CAPAS

Ensaios de Crítica

Moniz Barreto

Prefácio: Vitorino Nemésio

Colecção Pensamento

Livraria Bertrand. Lisboa, 1944

O Sr. Eça de Queiroz, todo entregue à emoção presente e, na segunda parte da sua carreira literária capaz de organizar emoções, aparece-nos como um verdadeiro artista capaz de organizar emoções, aparece-nos como um verdadeiro artista, isto é, como um espírito cuja função natural é a representação colorida da realidade. Nem filósofo, nem moralista, e ainda menos filósofo que moralista, a sua atitude natural é a visão comovida e restrita.

NOTÍCIAS DO CIRCO

Num artigo de Joana Amaral Cardoso, hoje no Público, pode ler-se:

«Há 20 anos pensou-se num acordo entre as TV para cobrir os incêndios. O efeito esbateu-se
á cerca de 20 anos, esboçou-se uma tentativa de acordo entre canais portugueses para harmonizar boas práticas na cobertura dos incêndios. A iniciativa foi da RTP; gerou polémica, ainda que tenha deixado algum lastro no ecossistema mediático. Porém, de pouca dura. Hoje, os directores de informação dos principais canais rejeitam a ideia — “absurdo”; “não é uma questão”. As televisões são alvos fáceis e recorrentes das críticas quanto à forma como cobrem os fogos e os últimos dias não são excepção. A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) lembrou na terça-feira que devem ser seguidos os princípios da sua directiva específica para os incêndios, com “respeito”.»

 A cobertura que as televisões estão a fazer dos incêndios é completamente escandalosa.

 Tudo aquilo é um absurdo.

 O jornalismo acabou!

 O capitalismo selvagem tomou conta dos media.

 E não é de hoje!

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

OLHAR AS CAPAS

José Afonso, O Génio Intemporal

Visão Biografia nº 3

Capa: João Carlos Mendes

Trust In News, Lisboa, Agosto de 2024

Os mais tradicionalistas defensores do fado de Coimbra não perceberam bem a ousadia e olhavam com estranheza e desconfiança para essas canções que prescindiam dos acordes das guitarras e para o miúdo, Rui Pato, que alinhava nessas aventuras musicais com José Afonso.

NOTÍCIAS DO CIRCO

Simplesmente deploráveis as comunicações do Presidente da República e do Primeiro-Ministro, após o Conselho de Ministros Extraordinário de ontem que, presidido por Marcelo, decretou o estado de calamidade para as aldeias, vilas e cidades que enfrentam o pesadelo dos incêndios.

Num tempo em que as palavras são quase inúteis ficou demonstrado, mais uma vez, a fraca qualidade dos políticos que governam os nossos destinos.

terça-feira, 17 de setembro de 2024

A CASA DA AVÓ ESTÁ A ARDER


 Um país a arder.

Todos os anos a mesma tragédia, a mesma angústia, as mesmas palavras dos governantes, as mesmas horas e horas e horas de transmissões televisivas, a repetirem as mesmas imagens, repórteres sem saber o que dizer mais perante tantas horas de transmissão.

Entrei no Largo da Memória do Luís Eme e copio o que li:

«O que dizer, num dia como hoje? 

Nada, talvez seja a coisa mais inteligente. 

Não vale a pena continuar a insistir  com os "lugares comuns" do costume, muito menos repetir o retrato do país, que teima em manter os maus hábitos de sempre. 

É mais um dia, daqueles, demasiado quente e demasiado triste.»

Há também no Público uma crónica de Adriano Miranda, tão simples, tão serena, tão trágica:

«No fundo da rua, ouvem-se gritos. Uma criança grita: – Bruno, a casa da avó está a arder! Somos o país que construímos. Somos o país que queremos.»

Legenda: fotografia de Luís Eme

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

DISTO, DAQUILO E DAQUELOUTRO

 «Ritz» foi a marca dos últimos cigarros que o pai fumou. 

Já o disse: um dia apanhou um susto, colocou o maço de lado e nunca mais lhe tocou. Um gesto que lhe permitiu viver mais uns anos do que aqueles que não teria vivido, se não cortasse com os cigarros. Cigarros que, como ele dizia, lhe poderiam provocar a morte, mas também o ajudaram a viver. Lembra-se que fumava três maços de cigarros «Unic», tabaco negro, a bela conta de  três maços por dia

Quando deixou de fumar permitiu sempre que fumassem junto dele. 

Há dias na sua crónica do Público de 30 de Agosto, Ana Cristina Leonardo  conta esta história:

 «Dou por mim a recordar uma viagem a Madrid (tudo por conta do madrileno Javier Marías, mesmo se infeliz e prematuramente morto). Num restaurante, um amigo acende um cigarro após a refeição. Discretamente, assinalo-lhe um velho muito velho que almoça numa mesa perto de nós. Percebendo o meu gesto, logo o velhíssimo espanhol comenta: “No se preocupe! Fume usted lo que quiera. Yo ya no puedo fumar pero el humo me estimula...”. Era ainda o tempo do Madrid me mata. E o tempo continua a matar-me (nos), embora com muito menos graça (basta pensar em Pedro Sánchez).»

1.

Na breve proximidade do 5 de Novembro, quando ficaremos a saber que presidente querem os americanos escolher, lembremos o que há alguns anos disse Woody Allen:

«Jamais imaginei que Donald Trump quisesse ser presidente dos Estados Unidos. Jamais imaginei que ele o conseguisse.»

Serão os americanos que têm, no boletim a depositar nas urnas, o desfecho do que irá acontecer.

Entretanto, pelo mundo fora, vamos sabendo  o que determinados líderes estrangeiros querem que aconteça: a eleição de Donald Trump:

Os que seguem, já sabemos o que querem, mas há mais:

Vladimir Putin, presidente da Rússia

Benjamin Netanyahu, chefe do governo de Israel

Viktor Orbán, primeiro ministro da Hungria

Javier Milei, presidente da Argentina

Kim Jong-Lin – líder da Coreia do Norte

No meio do carrossel pode ser que Hugo Soares, líder parlamentar do PSD, se bem que não tenha direito a voto, afine a pontaria e deixe de estar na dúvida para onde vai a sua preferência.

2.

Por cada dois professores que se aposentam só se forma um.  Em cinco anos formaram-se 7755 professores, aposentaram-se 11 mil e saem mais quatro mil só em 2024

3.

Lisboa é a terceira cidade da Europa a abrir mais hotéis.

Até 2026 terá 36 novos hotéis, com 4.425 quartos.

4.

Uma reportagem publicada no Expresso de 23 de Agosto perguntava:

«Porque engorda o preço da bola de Berlim na praia?

Na generalidade a bola de Berlim é vendida a 2,00 euros

5.

 Quase 3 mil trabalhadores ficaram sem emprego nos primeiros meses do ano.

6.

Enfim, ter cães dentro de um apartamento dá uma trabalheira dos demónios. Mas ir passeá-los às sete da manhã e depois mais tarde, viver numa casa atulhada de pêlos de cão e ainda partilhar – quantas vezes – a cama com o cão, é hoje considerado um ideal perfeito de vida. Os cães e gatos silenciosos passaram a filhos de substituição e são tratados como tal. Acho que não sou só eu que acha isto uma loucura colectiva em que os valores estão todos trocados.»

Ana Sá Lopes no Público

 7.

No obituário da morte de Ana Faria , publicado no Público, podia ler-se:

«Numa entrevista ao Jornal de Notícias (JN) em 2004, disse: "Trauteava músicas eruditas com letras minhas em português e isso despertou a atenção dos meus filhos e dos seus amigos. Todos queriam ouvir-me cantar. Depois, dava-lhes a ouvir o original." E daí nasceu Brincando aos Clássicos (1982), um disco cheio de adaptações de temas de compositores clássicos como Beethoven, Mozart, Chopin ou Verdi, transformados em canções para um Luís que "nunca foi a Paris", uma Clara com medo das pombas, uma Catarina tão tagarela que até "dá dores de cabeça" ou um Miguel "de olhos de mel".​

João Carlos Calixto não tem dúvidas de que estes álbuns foram "importantíssimos para a educação do gosto de tantas e tantas crianças de então". Ana Faria democratizou estes compositores, combatendo o elitismo que caracterizara o acesso à educação e à fruição musical durante o Estado Novo.»

Também comprou para os filhos, para os amigos dos filhos, Brincando aso Clássicos e tem poucas dúvidas que isso não lhes tenha sido útil.

POEMA DA MINHA ESPERANÇA

Que bom ter o relógio adiantado!…
A gente assim, por saber
que tem sempre tempo a mais,
não se rala nem se apressa.


O meu sorriso de troça,
Amigos!,
quando vejo o meu relógio
com três quartos de hora a mais!


…Tic-tac… Tic-tac…
(Lá pensa ele
que é já o fim dos meus dias).


Tic-tac…
(Como eu rio, cá p’ra dentro,
de esta coisa divertida:
ele a julgar que é já o resto
e eu a saber que tenho sempre mais
três quartos de hora de vida).

Sebastião da Gama em Serra-Mãe

domingo, 15 de setembro de 2024

DITOS & REDITOS

Enganam-se os que pensam que as árvores estão quietas.

A raiva é uma perda de tempo.

A coisa não está fácil.

Caminhar é fundamental.

O calculismo põe as pessoas velhas.

O inferno são os outros.

Não se fala do que não se sabe.

Qualquer maneira de começar é uma boa maneira de começar. 

sábado, 14 de setembro de 2024

AINDA, E SEMPRE, MÁRIO VIEGAS

Os CDs 3 e 4 «Mário Viegas em Casa» são reproduções de cassettes encontradas por Maria Hélia Viegas, irmã do Mário.


«Eram gravações feitas por ele, em casa, a treinar a leitura dos poemas. Deitado no chão, de barriga para baixo, para controlar o diafragma – isto soube mais tarde pela irmã, porque ela assistia. As gravações estavam com muitos problemas, mas a recuperação foi feita de uma maneira incrível. Há uma bobina que tinha a festa de aniversário da Maria Hélia de um lado e a dele do outro. E a certa altura, o pai vira-se para ele e pergunta: ‘Ó António, não quer contar uma das suas historinhas aos seus amigos?’ Então ele conta O Dente Furado e A Bruxa da Montanha, que dura quase 13 minutos; ele lê e faz as vozes das personagens todas. Com nove anos!»

Para a nova edição da «Auto-Photo Biogrfia (não autorizada), José Moças quis investigar se haveria mais alguma coisa a juntar aos materiais que já tinha entre mãos. “Pus uma publicação no Facebook e aparece-me um homem do Porto a dizer que tinha uma coisa que gravara do Mário Viegas num café-concerto. Fui logo ter com ele, que já me trazia aquilo num CD, e contou-me a história [chama-se José Martins e tem um texto no livro a explicá-la]. Tinha sido num sábado e num domingo, num espaço chamado Rez do Chão, do grupo de teatro Realejo. Aquilo só ouvido: as pessoas riem do princípio ao fim. Ele diz na gravação: ‘Atenção, que este vai ser o meu primeiro disco ao vivo, portanto batam palmas quando é para bater palmas, estejam calados quando é para estar calados.’”

Entendeu-se  que seria interessante, útil, reproduzir os poemas ditos pelo Mário Viegas. 

Aqui ficam:

 

Café Concerto no espaço “Rez do Chão”, 1986


CD 1


O desespero da piedade – Vinicius de Moraes

As educações burguesas – José Cutileiro

Tratados como cães – Raul de Carvalho

Poema pial – Fernando Pessoa

Problemas, problemas & Cª – Armindo Mendes de Carvalho

Cantiga dos Ais – Armindo Mendes de Carvalho

O sapo e o prato – Tóssan

O valor do vento – Ruy Belo

Separata gratuita – Mário-Henrique Leiria

Conto Infantil – Mário-Henrique Leiria

História Habitual – Mário-Henrique Leiria

Receita de gin tónico – Mário-Henrique Leiria

Bisturi – Mário-Henrique Leiria

Cegarrega para Crianças – Mário-Henrique Leiria

Carreirismo – Mário-Henrique Leiria

Exageros –Mário-Henrique Leiria


Café Concerto no espaço “Rez do Chão”, 1986


CD 2

 

Telefonema – Mário-Henrique Leiria

Casamento – Mário-Henrique Leiria

Uma pequena luz – Jorge de Sena

Hino ao 1º de Abril – Jorge de Sena

Ditosa pátria minha amada Jorge de Sena

Carta a Portugal – Jorge de Sousa Braga

A um Papa – Pier Paolo Pasolini

Carta a Otelo – Gastão Cruz

Poema do alegre desespero – António Gedeão

A Catedral de Burgos – António Gedeão

Cortejo – Alexandre O’Neil

O Dia da Criação – Vinicius de Moraes

10 mandamentos do espectáculo de cabaret – Karl Valentim

Década de Salomé – José Afonso

Oração por Marilyn Monroe – Ernesto Cardenal

Ode ao Pão – Pablo Neruda

 

Mário Viegas em Casa


CD 3


Cantar não é talvez suficiente – Manuel Alegre

Arma virumque cano – Virgíli

O Canto e as Armas – Manuel Alegre

Canto I – Luíz Vaz de Camões

Peregrinação – Luís Vaz de Camões

Explicação de Alcácer Quibir – Manuel Alegre

Raiz – Manuel Alegre

A Batalha de Alcácer Quibir – Manuel Alegre

O longo sono – Manuel Alegre

As colunas partiam de madrugada – Manuel Alegre

Às onze da manhã de mil novecentos e sessenta e dois – Manuel Alegre

A ceia dos cardeais – Júlio Dantas

O Judeu – Bernardo Santareno

- Frei Luís de Sousa , acto primeiro – Almeida Garrett

Homem, abre os olhos e verás – Armindo Rodrigues

Dia de Natal – António Gedeão

São proibidas as flores – Autor desconhecido

A primeira canção com lágrimas – Manuel Alegre

A segunda canção com lágrimas – Manuel Alegre


CD 4 Mário Viegas em Casa


CD 4


Dente furado – Autor desconhecido

A Bruxa da Montanha – Autor desconhecido

Minhas Irmãs no Mal – Autor desconhecido

Nambuangongo meu Amor -  Manuel Alegre

Explicação ao País de Abril – Manuel Alegre

País de Abril – Manuel Alegre

Metralhadoras cantam a canção da guerra – Manuel Alegre

Regresso – Manuel Alegre

É preciso um País – Manuel Alegre

Abaixo El-Rei Sebastião – Manuel Alegre

Bodas de Sangue – Federico Garcia Lorca

Paris não rima com meu país – Manuel Alegre

Emigração – Mário Viegas

Correio – Manuel Alegre

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

POSTAIS SEM SELO


Até ao meu último fôlego, bater-me-ei pelas liberdades.

Catherine Ribeiro

NUM BAIRRO MODERNO


                                                                A Manuel Ribeiro

Dez horas da manhã; os transparentes
Matizam uma casa apalaçada;
Pelos jardins estacam-se as nascentes,
E fere a vista, com brancuras quentes,
A larga rua macadamizada.

Rez-de-chaussée repousam sossegados,
Abriram-se, nalguns, as persianas,
E dum ou doutro, em quartos estucados,
Ou entre a rama dos papéis pintados,
Reluzem, num almoço, as porcelanas.

Como é saudável ter o seu aconchego,
E a sua vida fácil! Eu descia,
Sem muita pressa, para o meu emprego,
Aonde eu agora quase sempre chego
Com as tonturas duma apoplexia.

E rota, pequenina, azafamada,
Notei de costas uma rapariga,
Que no xadrez marmóreo duma escada,
Como um retalho de horta aglomerada,
Pousara, ajoelhando, a sua giga.

E eu, apesar do sol, examinei-a:
Pôs-se de pé; ressoam-lhe os tamancos;
E abre-se-lhe o algodão azul da meia,
Se ela se curva, esguedelhada, feia,
E pendurando os seus bracinhos brancos.

Do patamar responde-lhe um criado:
«Se te convém, despacha; não converses.
Eu não dou mais.» E muito descansado,
Atira um cobre lívido, oxidado,
Que vem bater nas faces duns alperces.

Subitamente - que visão de artista! -
Se eu transformasse os simples vegetais,
À luz do Sol, o intenso colorista,
Num ser humano que se mova e exista
Cheio de belas proporções carnais?!

Bóiam aromas, fumos de cozinha;
Com o cabaz às costas, e vergando,
Sobem padeiros, claros de farinha;
E às portas, uma ou outra campainha
Toca, frenética, de vez em quando.

E eu recompunha, por anatomia,
Um novo corpo orgânico, aos bocados.
Achava os tons e as formas. Descobria
Uma cabeça numa melancia,
E nuns repolhos seios injectados.

As azeitonas, que nos dão o azeite,
Negras e unidas, entre verdes folhos,
São tranças dum belo cabelo que se ajeite;
E os nabos - ossos nus, da cor dp leite,
E os cachos de uvas - os rosários de olhos.

Há colos, ombros, bocas, um semblante
Nas posições de certos frutos. E entre
As hortaliças, túmido, fragrante,
Como dalguém que tudo aquilo jante,
Surge um melão, que me lembrou um ventre.

E, como um feto, enfim, que se dilate,
Vi nos legumes carnes tentadoras,
Sangue na ginja vívida, escarlate,
Bons corações pulsando no tomate
E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.

O sol dourava o céu. E a regateira,
Como vendera a sua fresca alface
E dera o ramo de hortelã que cheira,
Voltando-se, gritou-me, prazenteira:
«Não passa mais ninguém!... Se me ajudasse?!...»

Eu acerquei-me dela, sem desprezo;
E, pelas duas asas a quebrar,
Nós levantámos todo aquele peso
Que ao chão de pedra resistia preso,
Com um enorme esforço muscular.

«Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!»
E recebi, naquela despedida,
As forças, a alegria, a plenitude,
Que brotam dos excessos de virtude
Ou duma digestão desconhecida.

E enquanto sigo para o lado oposto,
E ao longe rodam as carruagens,
A pobre afasta-se, ao calor de Agosto,
Descolorida nas maçãs do rosto,
E sem quadris na saia de ramagens.

Um pequerrucho rega a trepadeira
Duma janela azul; e, com o ralo
Do regador, parece que joeira
Ou que borrifa estrelas; e a poeira
Que eleva nuvens alvas a incensá-lo.

Chegam do gigo emanações sadias,
Oiço um canário - que infantil chilrada! -
Lidam ménages entre as gelosias,
E o sol estende, pelas frontarias,
Seus raios de laranja destilada.

E pitoresca e audaz, na sua chita,
O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,
Duma desgraça alegre que me incita,
Ela apregoa, magra, enfezadita,
As suas couves repolhudas, largas.

E, como grossas pernas dum gigante,
Sem tronco, mas atléticas, inteiras,
Carregam sobre a pobre caminhante,
Sobre a verdura rústica, abundante,
Duas frugais abóboras carneiras.

      Lisboa, Verão de de 1877

 

Cesário Verde em O Livro de Cesário Verde

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

O OUTRO LADO DAS ESTANTES


Não há estante que aguente.

O maior livro da biblioteca da casa, tem a altura de 42 cm e a largura de 29,5 cm.

O livro é da autoria de Mário Viegas que, para além da sua discografia, deixou escrita, e largamente ilustrada, a sua Auto-Photo Biografia (não autorizada).

Logo na capa Mário Viegas diz ao que vem:

«Rir, Chorar, Denúncias, Teatradas, Poesia, Amor, Ódio, Acção, Mistério, Escândalos, Surpresas!!!

Revelações sensacionais!! Segredos político-teatrais nunca divulgados!!!

Mais de 200 páginas com textos e fotografias inéditas».

A páginas 132 Mário Viegas fala de Eugénio de Andrade e cita: 

«Um Poeta, que sempre me respeitou! Não é como o merdas do Alegre,,,»

Lembrar que a pedido do médico Jorge Ginja, mobilizado para a Guerra Colonial, em 1969 Mário Viegas gravou 40 poemas.

A gravação foi encontrada, no meio de diversa papelada e cassettes, pela filha de Jorge Ginja, falecido em Maio de 2020 e está editada num áudio livro onde cabem poetas como José Carlos Ary dos Santos, José Gomes Ferreira, António Gedeão, Manuel Alegre, Alexandre O’ Neill, Joaquim Namorado, Pablo Neruda, Sebastião da Gama, entre outros.

Curiosamente este audio livro tem prefácio de Manuel Alegre por quem Mário Viegas não nutria a melhor das ideias...

Diga-se, por fim, que dado o tamanho do livro do Mário Viegas, ele encontra-se deitado numa parte da estante, juntamente com outros livros que, por motivos vários, não respeitam os tamanhos normais.