sexta-feira, 9 de novembro de 2012

OS CLÁSSICOS DO MEU PAI


O meu pai ainda apanhou os compact discd mas nunca comprou um CD player.

Manteve sempre um gosto muito especial pelos discos de vinil.

Contudo, entreteve-se, um entretimento que lhe causava um imenso gozo, a comprar Cds de obras de que gostava, considerava importantes, mas que nunca conseguiu adquirir em vinil.

Trazia-os aqui par casa, jantava-se, bebiam-se umas garrafas e punha-se o disco a rodar, ele que até detestava que a música clássica servisse como fundo, fosse do que fosse., mas entendia-se que o tempo começava a encurtar e era o tempo para, como dizia Chico Buarque, fazer as coisas como se fosse  a última.

O Requiem de Mozart foi um desses CDs.

Entendi que, nesta evocação, ficava bem incluir este poema de Jorge de Sena,  «Requiem» de Mozart», retirado do seu livro Arte de Música.

O meu pai tinha uma grande admiração por Jorge de Sena: pela sua escrita, a sua personalidade, a sua honestidade intelectual, a sua frontalidade, mesmo não concordando com algumas opiniões de Sena sobre o Partido, ou o  pós 25 de Abril.

Honestamente, há que reconhecer que a razão estava mesmo do lado do Jorge de Sena.

Sabemo-lo hoje, e de que maneira!...


Ouço-te, ó música, subir aguda
à convergente solidão gelada.
Ouço-te, ó música, chegar desnuda
ao vácuo centro, aonde, sustentada
e da esférica treva rodeada,
tu resplandeces e cintilas muda
como o silente gesto, a mão espalmada
por sobre a solidão que amante exsuda
e lacrimosa escorre pelo espaço
além de que só luz grita o pavor.
Ouço-te lá pousada, equidistante
desse clarão cuja doçura é de aço
como do frágil mas potente amor
que em teu ouvir-te queda esvoaçante.


II

Ó música da morte, ó vozes tantas
e tão agudas, que o estertor se cala.
Ó música da carne amargurada
de tanto ter perdido que ora esquece.
Ó música da morte, ah quantas, quantas
mortes gritaram no que em ti não fala.
Ó música da mente espedaçada
de  tanto ter sonhado o que entretece,
sem cor e sem sentido, no fervor
de sublimar-se nesse além que és tu.
Ó vida feita uma detida morte.
Ó morte feita um inocente amor.
Amor que as asas sobre o corpo nu
fecha tranquilas no possuir da sorte.


III

Além do falso ou  verdadeiro, além
do abstracto e do concreto,além da forma
e do conceito, além do que transforma
contrários pares noutros par's também,
além do que recorre ou nunca vem
ao que se pensa ou sente, além da norma
em que o não-ser se humilha e se conforma,
além do possuir-se, e para além
dessa certeza que outro ritmo dá
àquele de que as palavras têm sentido:
lá onde ouvir e não-ouvir se igualam
na mesma imagem virtual do na-
da—é que tu vais, ó música, partido
o nó dos tempos que por ti se calam.


IV

Tudo se cala em ti como na vida.
Tudo palpita e flui como no leito
em que se morre ou se ama, já desfeito
o abraço do momento em que, sustida
a sensação da posse conseguida
a carne pára a ejacular-se atenta.
Tudo é prazer em ti. Quanto alimenta
esta glória de existir, trazida
a cada instante só do instante ser-se,
reflui em ti, liberto, puro, aflante,
certeza e segurança de conter-se
na criação virtual o renascer-se
agora e sempre pelo tempo adiante,
mesmo esquecido. Em ti, o conhecer-se
deste possível é a paz do amante.


16 de Abril de 1962, revisto em 15 de Outubro 1967 e acrescentados os dois últimos poemas.

Nota do editor: o poema foi retirado de uma antologia poética de Jorge de Sena, organizada por Eugénio Lisboa e publicada pela Editorial Presença, Lisboa 1984.

2 comentários:

filhote disse...

Vinil... Mozart... Requiem... um pai com excelente gosto!

sammy,o paquete disse...

E outras coisas mais..., caro Filhote.
Continuar a recordar quem não queremos esquecer.
Um abraço