Mais umpedacinho da entrevista que Alexandra Lucas Coelho fez a Vitor Silva Tavares: uma
história deliciosa que mete Mahalia Jackson.
Eu estava no jornal. E de vez em quando precisava de
ir ao meu quartinho buscar um livro ou qualquer coisa para trabalho. Quando lá
chegava, deixando sempre as portas e janelas tudo aberto, tinha o quarto
inundado daquela pretalhada toda, nomeadamente o Vítor Maria José, que limpava
o meu quarto e era muito engraçado. Eu tinha um pequeno “pick up” de plástico
Philips em que os tipos aprenderam a mexer, e como tinha aqueles discozinhos de
45 rotações da Bessie Smith, da Mahalia Jackson, chegava lá e estava tudo numa
grande alegria a ouvir. Eu entrava, tirava as minhas coisas e ia-me embora.
Quem eram eles? Contratados. Como me viam lá às vezes a pintar coisas, um dia vieram com uma grande conversa. O que é que era? Quando acabava o contrato, para aqueles que não eram mortos – embora os contratos fossem muito continuados, mas a certa altura era demais, e eram obrigados a devolvê-los às terras de onde os tinham tirado –, o Estado tinha de arranjar uma camioneta. Juntava aquela gente toda e eles tinham uns paus com umas bandeiras, era um momento de grande alegria porque iam regressar. E então vinham-me pedir a mim para fazer as bandeiras. Andei a pedir pano de lençol por todo o lado e fiz um sol, estrelas, coisas assim muito berrantes, lindíssimas, fui mais considerado por essa gente do que qualquer Picasso ou Miró – espero que isso não apareça no jornal senão o Joe Berardo vai saber onde é que estão essas bandeiras e ainda apareço no Centro Comercial de Belém. De modo que fui encarregado das bandeiras da liberdade.
Um dia chego, e só lá está o tal criado do meu quartinho, muito triste, sentado na cama. “Epá, o que é que se passa? Então agora que vais embora é que estás triste?” Ele começa com uma grande conversa. O que é que ele queria? Levar com ele o disco de 45 rotações da Mahalia Jackson com o retrato dela na capa. Dei-lho.
Mas haveria alguma hipótese deste homem voltar a ouvir o disco? Algures no interior daquele “hinterland” deve estar um disco de Mahalia Jackson jamais ouvido. Mas tinha-o ele dentro do coração, do sangue, da cabeça. Levou aquilo como quem leva um pedacinho de Deus
Quem eram eles? Contratados. Como me viam lá às vezes a pintar coisas, um dia vieram com uma grande conversa. O que é que era? Quando acabava o contrato, para aqueles que não eram mortos – embora os contratos fossem muito continuados, mas a certa altura era demais, e eram obrigados a devolvê-los às terras de onde os tinham tirado –, o Estado tinha de arranjar uma camioneta. Juntava aquela gente toda e eles tinham uns paus com umas bandeiras, era um momento de grande alegria porque iam regressar. E então vinham-me pedir a mim para fazer as bandeiras. Andei a pedir pano de lençol por todo o lado e fiz um sol, estrelas, coisas assim muito berrantes, lindíssimas, fui mais considerado por essa gente do que qualquer Picasso ou Miró – espero que isso não apareça no jornal senão o Joe Berardo vai saber onde é que estão essas bandeiras e ainda apareço no Centro Comercial de Belém. De modo que fui encarregado das bandeiras da liberdade.
Um dia chego, e só lá está o tal criado do meu quartinho, muito triste, sentado na cama. “Epá, o que é que se passa? Então agora que vais embora é que estás triste?” Ele começa com uma grande conversa. O que é que ele queria? Levar com ele o disco de 45 rotações da Mahalia Jackson com o retrato dela na capa. Dei-lho.
Mas haveria alguma hipótese deste homem voltar a ouvir o disco? Algures no interior daquele “hinterland” deve estar um disco de Mahalia Jackson jamais ouvido. Mas tinha-o ele dentro do coração, do sangue, da cabeça. Levou aquilo como quem leva um pedacinho de Deus
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