sábado, 2 de dezembro de 2017

OLHAR AS CAPAS


O Natal do Clandestino

José Rodrigues Miguéis
Capa e desenhos: Bernardo Marques
Estúdios Cor, Lisboa, Natal de 1957

Há cidades que parecem viver na intimidade dos dramas do mar; onde este está sempre presente, em convívio com os homens. E nada fala tanto ao coração errante e solitário, como este apelo eterno do mar junto dos cais.
Foi a um destes molhes meio esbarrondados que o navio atracou pela manhã de 24 de Dezembro, vindo do sol, do mar aberto e azul da África e dos trópicos: era um velho cargueiro esgalgado, de alta chaminé enfarruscada, com grandes remendos no casco a desfazer-se em ferrugem, e a linha de flutuação alguns palmos acima das ondas: uma dessas ruínas obscuras que singram vagarosamente os mares do mundo, coxeando, em busca de freguês, com roupas mal lavadas a enxugar pelos cordames e alguns marujos esquálidos acotovelados nas amuradas a olhar a terra estranha. Um destes navios que podiam ter inspirado um conto triste a Joseph Conrad ou Pierre Mac Orlan.
Trazia uma carga pobre e variada: óleo de palma, cocos, bananas em mau estado, amendoim, uns fardos de algodão, e um macaco mais ou menos domesticado, que adoecera em viagem e gemia numa cama de trapos, queixoso do inverno.
Vinha a bordo, também, um passageiro clandestino de que não rezavam os livros de navegação, um só, que não pagara a passagem, entregue aos cuidados cúmplices de um ou dois marinheiros: escondido nas entranhas gemebundas do calhambeque, num cubículo sem ara e sem luz junto às carvoeiras.

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