O Natal do Clandestino
José Rodrigues
Miguéis
Capa e desenhos:
Bernardo Marques
Estúdios Cor,
Lisboa, Natal de 1957
Há cidades que parecem viver na intimidade dos dramas
do mar; onde este está sempre presente, em convívio com os homens. E nada fala
tanto ao coração errante e solitário, como este apelo eterno do mar junto dos
cais.
Foi a um destes molhes meio esbarrondados que o navio
atracou pela manhã de 24 de Dezembro, vindo do sol, do mar aberto e azul da
África e dos trópicos: era um velho cargueiro esgalgado, de alta chaminé
enfarruscada, com grandes remendos no casco a desfazer-se em ferrugem, e a
linha de flutuação alguns palmos acima das ondas: uma dessas ruínas obscuras
que singram vagarosamente os mares do mundo, coxeando, em busca de freguês, com
roupas mal lavadas a enxugar pelos cordames e alguns marujos esquálidos
acotovelados nas amuradas a olhar a terra estranha. Um destes navios que podiam
ter inspirado um conto triste a Joseph Conrad ou Pierre Mac Orlan.
Trazia uma carga pobre e variada: óleo de palma, cocos,
bananas em mau estado, amendoim, uns fardos de algodão, e um macaco mais ou
menos domesticado, que adoecera em viagem e gemia numa cama de trapos, queixoso
do inverno.
Vinha a bordo, também, um passageiro clandestino de
que não rezavam os livros de navegação, um só, que não pagara a passagem,
entregue aos cuidados cúmplices de um ou dois marinheiros: escondido nas entranhas
gemebundas do calhambeque, num cubículo sem ara e sem luz junto às carvoeiras.
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