terça-feira, 6 de agosto de 2024

CRONICANDO POR AÍ


«O Benfica é bom a formar miúdos. Tem é um grande problema com os graúdos. A deformação do clube prossegue, mas não desistamos. Um dia será possível contar outra história

Há uns dias, vi Rui Costa explicar que a transferência de João Neves para o Paris Saint-Germain ainda não era oficial, porque «nestas coisas» há sempre detalhes que é preciso ultimar, arestas que devem ser limadas. Não deixa de ser irónico que os dirigentes do Benfica falem com tanta tranquilidade e seriedade acerca destes negócios. Nunca um dirigente do Benfica nos últimos 20 anos aparentou ser tão profissional quanto no momento em que havia um atleta para vender.

É sempre nestes dias que os dirigentes do Benfica vestem o seu melhor fato para uma cerimónia quase sempre deprimente. Ontem, segunda-feira, minutos depois de confirmada à CMVM a venda de João Neves por uns míseros 59,9 milhões de euros, fui confrontado com um daqueles recordes que parecem ter sido pensados por uma equipa de guionistas. Ao que parece, o Benfica é o clube no mundo com mais vendas por valores superiores a 60 milhões de euros. A coisa é dita como se de uma proeza extraordinária se tratasse. Respiro fundo e olho pela janela. Faço os possíveis por conter as lágrimas de alegria e o orgulho deste desígnio em que se cumpre, afinal, o Benfica contemporâneo. Penso por momentos em marcar encontro com alguns amigos no Marquês, até que dou meia volta e lá abandono a ironia. É então que me lembro do que está quase sempre em causa nestes dias. Um miúdo. Mas não é um miúdo qualquer, como os 54 milhões — depois de comissão — parecem indicar.

É o miúdo da camisola impecavelmente enfiada nos calções, fiel a uma imagem que o precedia em várias gerações de ídolos, capaz de evocar o melhor da história do seu clube sem dizer uma palavra. Não precisou. Estava tudo à vista desde o primeiro momento.

O miúdo com idade para ser tiktoker e jovem promessa que pegou na primeira oportunidade e nunca perdeu tempo. Preferiu chegar a adulto mais depressa e com isso tornou-se referência do balneário e da bancada.

O miúdo bem formado, de maneiras raras no futebol, imediatamente reconhecido pelos seus pares. Pelo que joga e pelo modo como se apresenta. Um embaixador do Benfica e do desporto. Uma razão para se gostar ainda mais de futebol.

O miúdo que sempre representou com a maior elevação o clube do seu coração e que nunca se esqueceu dos seus outros pares, os que estavam na bancada.

O miúdo que sempre compreendeu e abraçou a responsabilidade de nos fazer sentir que quem está no relvado sofre tanto como os que estão cá fora, o que muitas vezes foi tudo.

O miúdo que, de camisola impecavelmente enfiada nos calções, deu tudo o que tinha por um clube com uma liderança desfraldada que não fez nem quis fazer o suficiente para manter alguém que foi Benfica da cabeça aos pés, do primeiro ao último minuto.

O miúdo que se fez homem no Benfica e merecia continuar a escrever essa história. O miúdo que, antes de escrever na sua biografia «capitão do Sport Lisboa e Benfica», viu o seu nome ser escrito no balancete. Em vez de se tornar um inevitável símbolo humano da grandeza do Benfica, o miúdo João Neves tornou-se mais uma página inevitável no rol de transferências do clube que bate recordes de tudo o que diz respeito a dinheiro, mas que, a cada ano que passa, encolhe um pouco mais face aos adversários.

Este é o clube em que o dinheiro é movimento na ordem dos milhares de milhões, mas ninguém considera admissível que se questione que modelo de gestão é este em que há tanto dinheiro para tanta extravagância absolutamente irrelevante, e não há dinheiro para um projeto desportivo mais ambicioso em que atletas como este miúdo sejam sempre os últimos a sair. Neste Benfica, a única coisa cerca quando um jovem talento aparece é que a direção e os empresários de sempre estão prontos, como sempre estiveram ao longo destes anos, para explicar que não havia nada a fazer, mesmo que nunca se tenha tentado algo diferente. Aparentemente, a única coisa que os dirigentes do Benfica têm como absolutamente certa no futebol mundial é que qualquer negócio tem de pagar 10% de custos de intermediação a Jorge Mendes.

Pois bem, o miúdo João entra diretamente para o vasto plantel dos jogadores que podiam ter sido heróis de uma história improvável num clube gigante e contra-cíclico que gere o que é seu para se tornar cada vez maior e não apenas para existir, porque sabe que assim estará mais perto de fazer história. Mas, para surpresa de ninguém, ainda não foi desta. Não sabemos exatamente o que obriga o clube a vender João Neves hoje, porque ninguém não clube parecer realmente capaz de explicar. É mais fácil responder com um sorriso quando nos falam nos golos do Pavlidis e dizer que não se quer agoirar. Compreendo.

Os golos de um novo avançado dão muito jeito para continuarmos a contar com a tolerância de sócios e adeptos, quem sabe até com a sua amnésia ou indiferença face aos gigantescos problemas estruturais que hoje condicionam a afirmação do Benfica. Os mais fortes adversários do clube são, esses sim, aqueles que continuam a navegar à vista, ao sabor de mais uma venda milionária para demonstrar que isto, seja lá o que isto for, funciona, apesar de o dinheiro não trazer felicidade nem vitórias nem grandeza, apenas a sensação desoladora de que somos, há demasiado tempo, uma peça no carrossel de um empresário.

O Benfica é bom a formar miúdos, de facto. Tem é um grande problema com os graúdos. A deformação do clube prossegue, mas não desistamos. Um dia será possível contar outra história do Benfica ao mundo. A de um clube lutador, muito antes de ser vendedor. É inevitável.

Desculpa, João. E obrigado.»

Vasco Mendonça, hoje, em A Bola. 

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