«O Benfica é bom a formar miúdos. Tem é
um grande problema com os graúdos. A deformação do clube prossegue, mas não
desistamos. Um dia será possível contar outra história
Há uns dias, vi Rui Costa explicar que a
transferência de João Neves para o Paris Saint-Germain ainda não era oficial,
porque «nestas coisas» há sempre detalhes que é preciso ultimar, arestas que
devem ser limadas. Não deixa de ser irónico que os dirigentes do Benfica falem
com tanta tranquilidade e seriedade acerca destes negócios. Nunca um dirigente
do Benfica nos últimos 20 anos aparentou ser tão profissional quanto no momento
em que havia um atleta para vender.
É sempre nestes dias que os dirigentes
do Benfica vestem o seu melhor fato para uma cerimónia quase sempre deprimente.
Ontem, segunda-feira, minutos depois de confirmada à CMVM a venda de João Neves
por uns míseros 59,9 milhões de euros, fui confrontado com um daqueles recordes
que parecem ter sido pensados por uma equipa de guionistas. Ao que parece, o
Benfica é o clube no mundo com mais vendas por valores superiores a 60 milhões
de euros. A coisa é dita como se de uma proeza extraordinária se tratasse.
Respiro fundo e olho pela janela. Faço os possíveis por conter as lágrimas de
alegria e o orgulho deste desígnio em que se cumpre, afinal, o Benfica
contemporâneo. Penso por momentos em marcar encontro com alguns amigos no
Marquês, até que dou meia volta e lá abandono a ironia. É então que me lembro
do que está quase sempre em causa nestes dias. Um miúdo. Mas não é um miúdo
qualquer, como os 54 milhões — depois de comissão — parecem indicar.
É o miúdo da camisola impecavelmente
enfiada nos calções, fiel a uma imagem que o precedia em várias gerações de
ídolos, capaz de evocar o melhor da história do seu clube sem dizer uma
palavra. Não precisou. Estava tudo à vista desde o primeiro momento.
O miúdo com idade para ser tiktoker e
jovem promessa que pegou na primeira oportunidade e nunca perdeu tempo.
Preferiu chegar a adulto mais depressa e com isso tornou-se referência do
balneário e da bancada.
O miúdo bem formado, de maneiras raras
no futebol, imediatamente reconhecido pelos seus pares. Pelo que joga e pelo
modo como se apresenta. Um embaixador do Benfica e do desporto. Uma razão para
se gostar ainda mais de futebol.
O miúdo que sempre representou com a
maior elevação o clube do seu coração e que nunca se esqueceu dos seus outros
pares, os que estavam na bancada.
O miúdo que sempre compreendeu e abraçou
a responsabilidade de nos fazer sentir que quem está no relvado sofre tanto
como os que estão cá fora, o que muitas vezes foi tudo.
O miúdo que, de camisola impecavelmente
enfiada nos calções, deu tudo o que tinha por um clube com uma liderança
desfraldada que não fez nem quis fazer o suficiente para manter alguém que foi
Benfica da cabeça aos pés, do primeiro ao último minuto.
O miúdo que se fez homem no Benfica e
merecia continuar a escrever essa história. O miúdo que, antes de escrever na
sua biografia «capitão do Sport Lisboa e Benfica», viu o seu nome ser escrito
no balancete. Em vez de se tornar um inevitável símbolo humano da grandeza do
Benfica, o miúdo João Neves tornou-se mais uma página inevitável no rol de
transferências do clube que bate recordes de tudo o que diz respeito a
dinheiro, mas que, a cada ano que passa, encolhe um pouco mais face aos
adversários.
Este é o clube em que o dinheiro é
movimento na ordem dos milhares de milhões, mas ninguém considera admissível
que se questione que modelo de gestão é este em que há tanto dinheiro para
tanta extravagância absolutamente irrelevante, e não há dinheiro para um projeto
desportivo mais ambicioso em que atletas como este miúdo sejam sempre os
últimos a sair. Neste Benfica, a única coisa cerca quando um jovem talento
aparece é que a direção e os empresários de sempre estão prontos, como sempre
estiveram ao longo destes anos, para explicar que não havia nada a fazer, mesmo
que nunca se tenha tentado algo diferente. Aparentemente, a única coisa que os
dirigentes do Benfica têm como absolutamente certa no futebol mundial é que
qualquer negócio tem de pagar 10% de custos de intermediação a Jorge Mendes.
Pois bem, o miúdo João entra diretamente
para o vasto plantel dos jogadores que podiam ter sido heróis de uma história
improvável num clube gigante e contra-cíclico que gere o que é seu para se
tornar cada vez maior e não apenas para existir, porque sabe que assim estará
mais perto de fazer história. Mas, para surpresa de ninguém, ainda não foi
desta. Não sabemos exatamente o que obriga o clube a vender João Neves hoje,
porque ninguém não clube parecer realmente capaz de explicar. É mais fácil
responder com um sorriso quando nos falam nos golos do Pavlidis e dizer que não
se quer agoirar. Compreendo.
Os golos de um novo avançado dão muito
jeito para continuarmos a contar com a tolerância de sócios e adeptos, quem
sabe até com a sua amnésia ou indiferença face aos gigantescos problemas
estruturais que hoje condicionam a afirmação do Benfica. Os mais fortes
adversários do clube são, esses sim, aqueles que continuam a navegar à vista,
ao sabor de mais uma venda milionária para demonstrar que isto, seja lá o que
isto for, funciona, apesar de o dinheiro não trazer felicidade nem vitórias nem
grandeza, apenas a sensação desoladora de que somos, há demasiado tempo, uma
peça no carrossel de um empresário.
O Benfica é bom a formar miúdos, de
facto. Tem é um grande problema com os graúdos. A deformação do clube
prossegue, mas não desistamos. Um dia será possível contar outra história do
Benfica ao mundo. A de um clube lutador, muito antes de ser vendedor. É
inevitável.
Desculpa, João. E obrigado.»
Vasco Mendonça, hoje, em A Bola.
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