Dantes, encontrar um rapaz
do meu tempo, era, para mim, uma festa, uma fogueira de abraços e recordações
quentes: «Então pá? Que é feito? Venham de lá esses ossos. Estás com um aspecto
magnífico! Cada vez mais novo, etc.»
Hoje, confesso, quando os
avisto, tremo. Porque não é raro encontrar-se a abraçar cascas de pessoas que
conheci no passado. Umas vezes, vazias, sorvidas não sei porque bocas de
monstros sugadores. Outras, cheias de substâncias alheias, inimigas, venenosas,
irreconhecíveis, quase.
- Mas tu és o Qualquer
Coisa, não és? Andámos juntos na Faculdade, não te recordas?
Parecia não querer
lembrar-se.
Então, perante a cara
agreste do velho camarada, descubro que já não é o mesmo. A vida, o casamento,
os filhos, o divórcio, o emprego, o êxito, o inêxito, o desemprego, isto,
aquilo ou coisa nenhuma, modificaram-no totalmente.
Olhamo-nos, desconhecidos.
Mas sem coragem de nos despedirmos imediatamente como que vexados daquela
amizade morta, ainda com tanto peso no caixão. E, sobretudo, pelo meu lado,
farto de dizer «pá».
Lembras-te, pá?
Nem ele se lembra nem eu.
Por fim, lá nos
conseguimos afastar arrastadamente com o coração ferido e a boca a saber ao
amargor das cinzas inúteis onde talvez nunca ardesse qualquer labareda verdadeira.
Noutras ocasiões é uma
ex-namorada da juventude, agora tão abundantemente da cintura para cima, que
passa do alto da sua estátua de desdém, como quem diz: que bom eu fingir que
não o conheço! Nem pode haver possibilidade de termos futuros juntos.
Mas será, na verdade, ela?
A deusa que pisava sempre o chão como quem não quisesse magoar o luar?
Será
ela?
É.
Escondo-me em mim mesmo a
contemplar uma montra e, adeus, até nunca mais, monstro!
Como podem calcular esta
situação lastimável piorou depois do 25 de Abril. Nem fazem ideia das surpresas
que tenho sofrido nos últimos meses. Camaradas que dantes se apresentavam como
democratas de suco ardente e inalterável surgem de súbito diante de mim a
bramar contra os difíceis ensaios do novo regime: «Então a Democracia é isto,
não? «Este pesadelo que nem permite que as nossas mulheres vão à Baixa fazer
compras, às seis da tarde, sem o perigo de serem despidas e violadas?» «Diz-me
lá: e como conseguiram arranjar tantos bandidos à solta? Importaram-nos para
tornar a vida negra aos burgueses, não? (No fascismo, como vocês lhe chamam, ao
menos havia paz. Pelo menos é o que se lia nos jornais!) Sim, senhor. Podes
limpar as mãos à parede!»
Claro que volto logo as
costas às invenções imbecis do mentiroso, mas a surpresa ainda é às vezes mais
sufocante, quando encontro antigos reaças confessos que, mal me bispam ao
longe, correm aos berros sôfregos com os braços em jeito de abraçarem um
fantasma substituto, não vá eu escapar-lhes por algum alçapão enigmático.
- Finalmente somos livres,
hem! Realizaram-se os nossos sonhos comuns, pá! Oxalá esses infames fachos que
nos tiranizaram durante meio século, desapareçam sem deixar pegadas! Até já se
respira melhor, não achas? Não sentes o perfume de jardins invisíveis no ar?»
Etc.,etc.
Em resumo: as pequeninas
mágoas e desgostos pessoais a que os pobres homens como nós andam sujeitos em
todas as revoluções e que os historiadores dos grandes acontecimentos ignoram
nos seus cartapácios.
Que remédio, pois, senão
sofrê-las com coragem, essas e outras exíguas misérias humanas (humilhações,
desprezos, injustiças, desânimos, traições, covardias…) No fim de contas talvez
seja a única lenha, e mesmo assim podre, que poderemos dar para que na nossas
Revolução arda melhor a autêntica Fraternidade que nos une, de dentes cerrados,
a nós, os portugueses, que não queremos desistir do futuro, agora que basta
erguer as mãos, basta erguer as mãos, para lhe tocar. E talvez colher frutos
novos nas árvores.
José Gomes Ferreira em Revolução Necessária, Diabril, Junho
1975.
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