terça-feira, 23 de abril de 2013

BASTA ERGUER AS MÃOS...



Dantes, encontrar um rapaz do meu tempo, era, para mim, uma festa, uma fogueira de abraços e recordações quentes: «Então pá? Que é feito? Venham de lá esses ossos. Estás com um aspecto magnífico! Cada vez mais novo, etc.»

Hoje, confesso, quando os avisto, tremo. Porque não é raro encontrar-se a abraçar cascas de pessoas que conheci no passado. Umas vezes, vazias, sorvidas não sei porque bocas de monstros sugadores. Outras, cheias de substâncias alheias, inimigas, venenosas, irreconhecíveis, quase.

- Mas tu és o Qualquer Coisa, não és? Andámos juntos na Faculdade, não te recordas?

Parecia não querer lembrar-se.

Então, perante a cara agreste do velho camarada, descubro que já não é o mesmo. A vida, o casamento, os filhos, o divórcio, o emprego, o êxito, o inêxito, o desemprego, isto, aquilo ou coisa nenhuma, modificaram-no totalmente.

Olhamo-nos, desconhecidos. Mas sem coragem de nos despedirmos imediatamente como que vexados daquela amizade morta, ainda com tanto peso no caixão. E, sobretudo, pelo meu lado, farto de dizer «pá».

Lembras-te, pá?

Nem ele se lembra nem eu.

Por fim, lá nos conseguimos afastar arrastadamente com o coração ferido e a boca a saber ao amargor das cinzas inúteis onde talvez nunca ardesse qualquer labareda verdadeira.

Noutras ocasiões é uma ex-namorada da juventude, agora tão abundantemente da cintura para cima, que passa do alto da sua estátua de desdém, como quem diz: que bom eu fingir que não o conheço! Nem pode haver possibilidade de termos futuros juntos.

Mas será, na verdade, ela? A deusa que pisava sempre o chão como quem não quisesse magoar o luar?

Será ela?

É.

Escondo-me em mim mesmo a contemplar uma montra e, adeus, até nunca mais, monstro!

Como podem calcular esta situação lastimável piorou depois do 25 de Abril. Nem fazem ideia das surpresas que tenho sofrido nos últimos meses. Camaradas que dantes se apresentavam como democratas de suco ardente e inalterável surgem de súbito diante de mim a bramar contra os difíceis ensaios do novo regime: «Então a Democracia é isto, não? «Este pesadelo que nem permite que as nossas mulheres vão à Baixa fazer compras, às seis da tarde, sem o perigo de serem despidas e violadas?» «Diz-me lá: e como conseguiram arranjar tantos bandidos à solta? Importaram-nos para tornar a vida negra aos burgueses, não? (No fascismo, como vocês lhe chamam, ao menos havia paz. Pelo menos é o que se lia nos jornais!) Sim, senhor. Podes limpar as mãos à parede!»

Claro que volto logo as costas às invenções imbecis do mentiroso, mas a surpresa ainda é às vezes mais sufocante, quando encontro antigos reaças confessos que, mal me bispam ao longe, correm aos berros sôfregos com os braços em jeito de abraçarem um fantasma substituto, não vá eu escapar-lhes por algum alçapão enigmático.

- Finalmente somos livres, hem! Realizaram-se os nossos sonhos comuns, pá! Oxalá esses infames fachos que nos tiranizaram durante meio século, desapareçam sem deixar pegadas! Até já se respira melhor, não achas? Não sentes o perfume de jardins invisíveis no ar?» Etc.,etc.

Em resumo: as pequeninas mágoas e desgostos pessoais a que os pobres homens como nós andam sujeitos em todas as revoluções e que os historiadores dos grandes acontecimentos ignoram nos seus cartapácios.

Que remédio, pois, senão sofrê-las com coragem, essas e outras exíguas misérias humanas (humilhações, desprezos, injustiças, desânimos, traições, covardias…) No fim de contas talvez seja a única lenha, e mesmo assim podre, que poderemos dar para que na nossas Revolução arda melhor a autêntica Fraternidade que nos une, de dentes cerrados, a nós, os portugueses, que não queremos desistir do futuro, agora que basta erguer as mãos, basta erguer as mãos, para lhe tocar. E talvez colher frutos novos nas árvores.

José Gomes Ferreira em Revolução Necessária, Diabril, Junho 1975.

Legenda: cartaz de João Abel Manta, retirado do álbum 25DEABRIL30ANOS100CARTAZES, Editorial Diário de Notícias, Abril 2004

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