quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

NÃO ERA DESTE MUNDO


Nuno Bragança faria hoje 86 anos se não tivesse partido por um 7 de Fevereiro de 1985.

Tinha então 55 anos.

Escreveu Helena Vaz da Silva:

O Nuno Bragança mudou-se: passou a viver noutro lado, menos à nossa vista, mas perto à mesma.

E linhas à frente:

Ele não se distraiu um só minuto. Que eu saiba, nunca descansou.

Há criaturas que não são deste mundo, mas o mundo ficaria mais pequeno se elas não passassem por cá.

O Nuno Bragança não era deste mundo.

Escreveu pouco mas é uma referência da literatura do século XX.

Tenho um especial carinho por Directa.

Talvez porque tenha sido o primeiro livro que li de Nuno Bragança e posso que lhe meti olhos pelo começo de uma noite com findar pela madrugada.

Algo que já hoje não consigo fazer.

Certamente por incapacidade ou querendo ser simpático comigo mesmo, por os livros não me agarrarem.

Directa.

Designação noctívaga de dia-ligado-a-dia sem dormir nocturno.

Quarente e oito horas, sem dormir, na vida de um homem.

As ruas, as casas, os cais, as fronteiras, os cigarros Porto.


A mulher doente, a ternura do homem para com a mulher.

… desde que o seu braço esquerdo, ao acordar, encontrara o vazio do espaço na cama ao lado dele.

Um homem dentro da vida com a esperança, o desespero de mudar as coisas, um tempo situado no findar dos anos 60, a luta, a angústia de um país a aguardar por um Abril que não se sabia quando chegaria, se chegaria.

O Henrique olhou o seu relógio «Cauny Prima».
Dobra o mapa, mete-o na algibeira exterior esquerda. Depois desdobra totalmente a folha de papel, e lê:
«Era uma vez um surdo completamente surdo, um paralítico completamente paralítico e um calvo completamente calvo. Viviam juntos e de tanto se aborrecerem decidiram partir. A fim de alcançarem o ponto mais distante do mundo puseram-se a caminho a pé, ou seja: o paralítico ia deitado numa maca, porque era tão completamente paralítico que nem sequer se podia sentar, e o calvo e o surdo transportavam a maca. O surdo ia à frente.
A certa altura da viagem foi preciso atravessar uma floresta. Quanto mais os três homens penetravam nela mais o mato era denso e a folhagem cerrada: Por causa disso e do anoitecer, escurecia.
Iam a meio de uma clareira quando o surdo disse: "Poisa a maca." E deixou de andar, o que obrigou o calvo a parar também. O calvo e o surdo puseram a maca no chão.
E o surdo disse assim: "Esta floresta está cheia de assassinos e malandros. Há já um bom bocado que oiço a restolhada deles." O calvo respondeu: "Estou em crer nisso, porque sinto que os cabelos se me estão a pôr em pé." Então o calvo e o surdo desataram a correr, seguindo o trilho que tinham aberto no mato.
O paralítico ficou sozinho na clareira. E ele pensou: "Não gosto de estar nesta floresta. Parece-me que vou mas é fugir daqui."

Sem comentários: