O Manuscrito na Garrafa
Daniel Filipe
Colecção Horas
de Leitura nº 15
Guimarães
Editores, Lisboa Março de 1960
O Pinheiro apressava-se. «Ele é sincero consigo e com
os outros, porque acredita em tudo o que defende. Mas eu não. Já não sou suficientemente
simples para acreditar em fadas, nem ainda bastante hipócrita para o fingir a
contragosto. Nada tenho a fazer aqui. Para experiência basta».
À porta quatro homens olhavam-no, indecisos. Entraram,
um a um, tìmidamente, como quem pede desculpa de se fazer notar. Carlos
identificou-os logo – operários em traje domingueiro. Aqueles, por certo,
também acreditavam. Vinham, de toda a parte, procurar a verdade, integrar a
verdade nos corações submissos. Sorriu-lhe, inquirindo:
- Desejam alguma coisa?
Pinheiro ergueu a cabeça. E explicou:
- São representantes dos trabalhadores. Caramba,
esqueci-me Tinham pedido para serem recebidos.
E para os homens, à vontade:
- Vocês desculpem. Mas com tanta coisa que fazer,
passou-me inteiramente. Fica para a próxima. Cá nos encontraremos de novo.
Tenham paciência.
«Tenham paciência». Carlos sentiu a frase como uma
bofetada. «Tenham paciência. Uma vida inteira a ter paciência: paciência para
os filhos, para a mulher, para os salários de fome, para os patrões
espoliadores, para a doença, para a morte. Cabeça sempre curvada, concórdia,
humilhação. E agora também paciência para os intelectuais de pacotilha que não
se lembrara deles. Raio de vida».
Falou-lhes:
- Mas, afinal, queriam alguma coisa? Se lhes pudermos
ser úteis…
O mais velho dos quatro gaguejou, rodando nas mãos o
boné de xadrez:
- A gente queria era vê-los. Apenas para dizer que cá
a rapaziada está pronta para o que for preciso. O que a gente quer é aprender
Carlos sentiu um nó na garganta. «Raios partam isto
tudo. Tanta pureza, tanta ingenuidade malbaratada».
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