domingo, 15 de fevereiro de 2015

OBJECTO MÁGICO TORGUIANO



Dos poemas que gostaram de mim, poemas em cuja criação, através da leitura, participei e continuo a participar como se deles autor também fora, só uns quantos têm aquele carácter de obra acabada, mas nunca encerrada, e aquele cunho de resposta pronta a um apelo urgente que nos levam a dizer- como eu disse uma vez , ao sorridente cepticismo de Melo Neto, a propósito de " O Cão sem Plumas "- que há poemas que não podiam deixar de ter sido feitos, ao passo que outros podiam tê-lo sido ou não.
Dentre esses poemas  em relação aos quais se tem a impressão de que não podiam deixar de ter sido escritos, poemas que aos murros bateram – necessidade e urgência – às portas dos poetas seus autores, conto como um dos meus predilectos, o poema Lezíria, de Miguel Torga. É um objecto mágico que há mais de trinta anos me acompanha – e devo dizer, com toda a franqueza, que da poesia de hoje poucos são os talismãs que trago comigo. Gostava de vos fazer testemunhas e fruidores dos poderes de um tal objecto, mas não sou exegeta, porque não posso e, se pudesse, já não quereria. A exegese literária, hoje é um trabalho científico que não se compadece com a passarinheira palpitação dos amadores. Apesar de tudo, gostava de vos falar desse meu talismã, a Lezíria, antes de vo-lo transcrever no final desta crónica.

Lezíria

São duzentas mulheres. Cantam não sei
Que mágoa
Que se debruça e já nem mostra o rosto.
Cantam, plantadas n’água,
Ao sol e à monda neste mês de Agosto.

Cantam o Norte e o sul duma só vez.
Cantam baixo, e parece
Que na raiz humana dos seus pés
Qualquer coisa apodrece

(Excertos da crónica de Alexandre O’Neill As «Duzentas Mulheres» de Miguel Torga, em Já Cá Não está Quem Falou.

Nota do Editor;

O poema Lezíria encontra-se no 1º volume do Diário de Miguel Torga.

Legenda: A Ceifa no Alentejo, pintura de Cândido Teles

Sem comentários: