Dos poemas que gostaram de mim, poemas em cuja criação, através da leitura, participei e continuo a participar como se deles autor também fora, só uns quantos têm aquele carácter de obra acabada, mas nunca encerrada, e aquele cunho de resposta pronta a um apelo urgente que nos levam a dizer- como eu disse uma vez , ao sorridente cepticismo de Melo Neto, a propósito de " O Cão sem Plumas "- que há poemas que não podiam deixar de ter sido feitos, ao passo que outros podiam tê-lo sido ou não.
Dentre esses poemas
em relação aos quais se tem a impressão de que não podiam deixar
de ter sido escritos, poemas que aos murros bateram – necessidade e urgência –
às portas dos poetas seus autores, conto como um dos meus predilectos, o poema
Lezíria, de Miguel Torga. É um objecto mágico que há mais de trinta anos me
acompanha – e devo dizer, com toda a franqueza, que da poesia de hoje poucos
são os talismãs que trago comigo. Gostava de vos fazer testemunhas e fruidores
dos poderes de um tal objecto, mas não sou exegeta, porque não posso e, se
pudesse, já não quereria. A exegese literária, hoje é um trabalho científico
que não se compadece com a passarinheira palpitação dos amadores. Apesar de
tudo, gostava de vos falar desse meu talismã, a Lezíria, antes de vo-lo
transcrever no final desta crónica.
Lezíria
São duzentas
mulheres. Cantam não sei
Que mágoa
Que se debruça e já
nem mostra o rosto.
Cantam, plantadas n’água,
Ao sol e à monda
neste mês de Agosto.
Cantam o Norte e o
sul duma só vez.
Cantam baixo, e
parece
Que na raiz humana
dos seus pés
Qualquer coisa
apodrece
Nota do Editor;
O poema Lezíria encontra-se no 1º volume do Diário de Miguel Torga.
Legenda: A Ceifa no Alentejo, pintura de Cândido Teles
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